Estrearam em Janeiro duas óperas que apontam caminhos diversos para o que pode ser a ópera na actualidade. Blown Off Course, de Pedro Rebelo, e Paraíso, de Nuno da Rocha, têm pontos de partida diferentes e propõem experiências musicais e cénicas bem distintas.
Blown Off Course é uma obra para dois cantores, ensemble, electrónica e projecção vídeo, com inclusão de um cozinheiro (!), que cozinha ali mesmo, ao vivo. É uma criação que toma como assunto central o “choque cultural”, explorando as relações entre Portugal e o Japão através de duas personagens centrais, Hana e Valentim, que se encontram em dois tempos diferentes – “há seis horas atrás e há 500 anos atrás”. Duas viagens, uma actual, de avião, e uma há séculos atrás, de barco, cruzam-se. Os “encontros de acaso” de Hana (Camila Mandillo, soprano) e Valentim (André Henriques, baritono) são, na verdade, feitos de desencontros, desentendimentos de linguagem e de tempo, mas também de uma vontade de aproximação, em que a gastronomia tem um papel importante. Os cantores foram impecáveis nos seus papéis, pondo também na voz o desencontro, a curiosidade e o espanto. Choque, atracção, receio... será também uma história de amor?
Na encenação que Pedro Rebelo foi descobrindo in loco, no palco do O'culto da Ajuda, o público está disperso por três zonas, diante de duas telas (que desenham diagonais no palco) onde são projectadas imagens de água e nuvens (o mar, o vento...). Um espaço que se constrói ali, com grande proximidade entre o público e os músicos, aspecto muito importante, cremos, para a forma de comunicação – à procura de cumplicidades – que ali se estabelece. Outra personagem/ narrador de Blow Off Course é o Vento, interpretado por Miguel Azguime. Para além de tudo isso, no meio do público há uma cozinha improvisada onde o cozinheiro Vicente Viriato faz, a certa altura, peixinhos da horta e um chá que serão distribuídos aos espectadores. Nós comemos e bebemos, e Hana e Valentim também, no seu encontro de palavras, sons e comida. A música de Pedro Rebelo, bem próxima dos espectadores, vai delicadamente criando um mundo, uma viagem (ou serão duas?). Em complemento ao Sond'Ar-te Electric Ensemble (com Sílvia Cancela na flauta, Nuno Pinto no clarinete, João Dias na percussão, Francisco Cabrita no piano, Vitor Vieira no violino e André Ferreira no violoncelo) ouvimos um shakuachi, uma flauta japonesa de bambu (que foi tocada pela convidada especial Kiku Day), que tem um papel importante no diálogo musical proposto na ópera. A certa altura, o shakuachi põe-se à conversa com a outra flauta: Oriente e Ocidente procurando pontes de comunicação, numa música decididamente nova, mas capaz de pegar em referências da música antiga, de tradições portuguesas e japonesas do século XVI e XVII. Para além disso, Pedro Rebelo criou com sons electrónicos (que incluem sons “construídos” e gravações de campo), uma espécie de “pano de fundo” que emerge, aqui e ali. Um espectáculo depurado, que conjuga elementos criativos que Pedro Rebelo tem vindo a desenvolver – o trabalho com a electroacústica e com field recordings, instalações e composições para lugares específicos, composição com alguns elementos “abertos” aos intérpretes (mas controlados), relação próxima com os instrumentos e com a sua história, e sobretudo a ideia de trabalhar a música como parte de processos culturais mais vastos, onde há diálogos, mas também conflitos e (in)comunicações. Pedro Rebelo não é, à primeira vista, um “compositor de ópera”. Mas ele fez da encomenda da Miso Music Portugal (com apoio da Queen's University Belfast, onde Rebelo é professor) um espectáculo que constrói um lugar de cruzamento várias das suas pesquisas artísiticas.
Nuno da Rocha · © Márcia Lessa
Outra história é Paraíso, ópera encomendada pelo CCB a Nuno da Rocha para iniciar as comemorações do 30.º aniversário da instituição. Ópera construída em colaboração com o escritor Clément Bondu, autor de um libreto arriscado, que levanta urgentes questões filosóficas, num mundo onde a ideia de futuro parece em séria crise, apesar da abundância de múpis publicitários em que a palavra “futuro” nos aparece hoje. Quanto mais falta, mais se proclama. O ponto de partida da ópera são pontas soltas do muito repisado mito de Orfeu. Quem seriam aquelas ninfas que foram responsáveis pela sua morte? Que mundo se pode construir depois da morte de Caronte, o barqueiro que leva as almas para o lado de lá?
Paraíso é uma ópera para uma só cantora, um ensemble de seis músicos e meios electrónicos. Neste aspecto, está próxima da economia de meios musicais de Blown Off Course. E também na palavra “viagem”, que é comum a ambas. Mas as duas óperas propõem viagens bem diferentes. O ponto de partida de Paraíso é bem interessante, propondo uma reflexão sobre a possibilidade de, reactivando a memória, pensar um mundo diferente. Como inventar uma nova forma de passar “para o lado de lá”? Que mundo se pode erguer das ruínas do passado? Contudo, o libreto de Bondu interrompe esse caminho e sugere que não há nada que nos permita vislumbrar um outro mundo para lá da destruição e da ruína, a não ser uma contemplação melancólica e sublime da paisagem final (neve, uma águia, o infinito...). Na primeira parte da ópera, uma guitarra eléctrica é destruída em palco, por seres com forma humana: são bailarinos/ ninfas “do outro mundo”. Uma imagem que nos lembra os hominídeos do filme 2001: Odisseia no espaço de Kubrick, descobrindo-se (violentamente) humanos. Um conjunto de excelentes bailarinos da companhia La Veronal (de Barcelona), dirigidos por Marcos Morau, fazem companhia em palco a Eduarda Melo, soprano que aguentou muito bem o desafio de cantar sozinha este “monodrama” filosófico. Ela canta, mas tem também muitas partes faladas. A escrita vocal de Nuno da Rocha parece musicalmente um dos pontos fracos da ópera. Falta-lhe invenção e arrojo. Mas Nuno da Rocha não está sozinho neste aspecto, o que nos obriga a um parêntesis.
É preciso dizê-lo: grande parte da ópera contemporânea sofre de um problema de voz. Quando tanta coisa é possível, os compositores parecem muitas vezes acanhar-se e pesquisar pouco neste domínio. Também Blown Off Course parece conter-se em excesso na escrita vocal. É perigoso generalizar, mas falta, talvez, inventar uma capacidade nova para as vozes na ópera contemporânea. A voz pode hoje (ainda mais com os meios tecnológicos à disposição), criar outras formas de dizer e cantar, fora da linearidade da ópera tradicional. Claro que os compositores podem deliberadamente escolher a simplicidade e defender a “compreensão do texto”. Mas, ainda assim, há muitas formas de o fazer que mereciam ser mais profundamente investigadas. O teatro e a música têm hoje ferramentas para o tratamento do texto cantado e falado que não tinham há 150 anos ou 200 atrás. Muitas portas se abriram para a composição para voz. Dessas portas abertas, há caminhos ainda em aberto para a invenção de “vozes em cena” que nos parecem pouco explorados.
Mas voltemos a Paraíso: o mais interessante da ópera, para além da crua e violenta encenação de Marcos Morau com bailarinos “de alta intensidade” (mesmo se os movimentos são “micro”), é a música de Nuno da Rocha para o ensemble que inventou, com piano e órgão (por André Hencleeday), guitarra eléctrica (pelo próprio Nuno da Rocha), percussão abundante (Marco Fernandes), trompete (João Silva), clarinete (Paulo Bernardino) e violoncelo (Raquel Reis). Os músicos (que fizeram um excelente trabalho, diga-se, com a direcção musical de Pedro Neves) tocam também melódicas e outros pequenos instrumentos e dizem (nalguns momentos) palavras do texto. Música que é particularmente feliz na interligação dos timbres e na sua original construção harmónica, contribuindo para o ambiente estranho e desolado deste Paraíso. No palco, cinzas e lixo, ruínas e destruição. Nada se vê do futuro. E um fado de Amália (o Fado de cada um) vem tentar (quanto a nós, equivocamente) uma consolação impossível. Interessante é o uso de discos em palco, dispositivo que coloca uma parte da música noutra dimensão, e joga com a questão da recordação. Que é um disco senão uma forma de fixação de memória? “Recordar” é, etimologicamente, fazer passar de novo pelo coração (e record, disco, não vem também daí?)
Paraíso e Blown Off Course, distantes em tudo, mas próximas na economia de meios musicais, inventam e investigam novas possibilidades para a música de hoje. Fazem-no a seu modo, com as suas linguagens frescas, com as suas forças e fragilidades, propondo viagens distintas que lançam novas pistas para a produção de ópera actual. Será que lhes podemos chamar “óperas” sem receio, como fazem os seus autores? Parece que sim.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
>> Topo
|