2023.01.13 · Teatro Nacional de São Carlos, Lisboa
Sinfonia 2022 de Nuno Côrte-Real
Orquestra Sinfónica Portuguesa, Nuno Côrte-Real (maestro)

2023.01.28 · Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Posição Relativa de Diogo Alvim
Ensemble DME
Estreias que desencadeiam ideias
PEDRO BOLÉO

Obras em estreia desafiam particularmente o exercício da reflexão crítica. Teremos ouvido bem? Com que obras poderemos comparar o que ouvimos? O que ficará registado na nossa memória, sempre inseparável das sensações provocadas pela música? Que palavras é preciso inventar para pensar o que é novo, fazendo-se pela primeira vez?

A escuta de duas obras novíssimas, Sinfonia 2022, de Nuno Côrte-Real e Posição Relativa, de Diogo Alvim, suscitou-nos este texto – e estas dúvidas. Obras opostas no seu ânimo, no seu ímpeto, na sua estética. Compará-las seria comparar alhos com bugalhos. Vamos então por partes.

Sinfonia 2022 encontra grande parte da sua linguagem na arte da modulação. O que salta aos ouvidos é, antes de mais, uma busca de formas variadas de concatenação harmónica. Se no início somos sobressaltados por uma sensação de estar perante rock sinfónico (talvez pela presença pujante da percussão e do órgão), logo essa sensação superficial se extingue, para percebermos que a busca de Nuno Côrte-Real é do domínio não apenas do jogo harmónico, mas das formas de criação de um timbre orquestral. Aparecem vibrafone, harpa, sinos, e com eles muitos efeitos possíveis para a orquestra. Surgem motivos melódicos nessa rede harmónica e tímbrica, como uma citação de Wagner de Tristão e Isolda, de que tínhamos aliás ouvido Prelúdio e Transfiguração de Isolda na primeira parte deste concerto (num arranjo do próprio Nuno Côrte-Real com a excelente soprano Ann Petersen). Regressos temáticos ajudam depois os ouvintes a identificar o que já passou e que agora volta. Nuno Côrte-Real não está preocupado com inventar formas novas, mas com manter o ouvinte atento. O seu caminho é-lhe apontado, por outro lado, pelo próprio trabalho artesanal de compositor, de que conhece bem o métier. Algumas vezes a banalidade impõe-se, mas isso não quer dizer que o trabalho de orquestração do compositor não seja interessante. Os problemas estéticos que levanta, têm muitas vezes a ver com o quadro previamente definido dos caminhos possíveis.

Sinfonia 2022 é uma obra sinfónica com alguma ambição, pretendendo ser também uma reflexão musical sobre os nossos tempos: os títulos dos 4 andamentos (estrutura convencional da sinfonia, com um terceiro andamento tipo scherzo) não deixam dúvidas – é de tempos de incerteza, guerra, destruição e pessimismo civilizacional que o compositor quer “falar” – In Search of Darkness (Em busca do Abismo), Song of Death (Canção da Morte), Fado e Nuclear Marching Band (Marcha Nuclear). Nuno Côrte-Real procura uma música orquestral capaz de “dizer”, ou seja, capaz de uma expressão comunicativa (directa, se preciso for) de um pensamento. Nesse sentido, ele pode ser considerado descendente de Wagner e de alguns últimos românticos que são já os primeiros modernos (qualquer coisa nos lembrou o Scriabin de Poema do êxtase), na sua ambição de criar uma forma grande que possa conjugar drama e pensamento, numa visão “pessoal e espiritual”, pela via do trabalho orquestral.

O segundo andamento vê a aparição do saxofone como instrumento solista emergir na Orquestra Sinfónica Portuguesa. Wagner continua a pairar, citado. Zonas de contraponto “à antiga” cruzam-se com uma dança que se tornará numa espécie de dança macabra. É sempre o jogo harmónico a dominar o percurso da escrita orquestral, mas nem sempre com os melhores resultados do ponto de vista formal e expressivo neste segundo andamento. Bem mais convincente é o Fado, um andamento ligeiro muito bem orquestrado (se é que existe algo de “ligeiro” nesta sinfonia). Cativante, simples, leve, quase irónico, este Fado, que corre o risco de se tornar um hit orquestral autónomo, abre caminho, por contraste, para o violento andamento final, em que a alusão à guerra (uma Marcha Nuclear!) se torna uma denúncia da abismal loucura humana. O uso de percussões potentes, o regresso do órgão e de acelerações “em queda”, desenham um quarto andamento de grande efeito, dramatizado pelas cordas e por melodias “românticas”, desembocando depois na loucura. A música possui aqui um pathos que pede ao espectador que se comova (e reflicta), “de coração para coração” – ecos do romantismo? Simultaneamente, ela tem um ímpeto rítmico modernista que não permite deixar o ouvinte indiferente, e uma orquestração colorida, embora sempre a voltar a tons escuros, que dominam o carácter desta peça pessimista. Ou seja, ela é nossa contemporânea nos seus desesperos (um sinal de alarme perante os caminhos da humanidade?), mesmo se não o é inteiramente nas suas formas.

Diogo Alvim · © Susana Pomba
Diogo Alvim · © Susana Pomba

Sobre Posição Relativa, de Diogo Alvim, precisamos de outras palavras. É, de facto, como o título indica, uma peça que brinca com a posição relativa dos músicos uns em relação aos outros (e em relação ao público também, pois claro). Uma peça simples, directa, sem folhos, sem artifícios retóricos. São apenas cinco músicos que mudam de lugar no espaço (excepto o percussionista, que não poderia ali mover o seu vibrafone). Numa sala (bem cheia, com muitas dezenas de pessoas!) do Museu Nacional de Arte Antiga ouviu-se música nova, de compositores italianos: Salvatore Sciarrino, Aldo Clementi, Giacinto Scelsi e peças muito recentes (incluindo uma estreia) de Valerio Sannicandro, tendo este último dirigido o Ensemble DME. Esplorazioni era o nome do concerto, que pretendia juntar artistas portugueses e italianos, em torno do tema das “sinestesias”. Focos de luzes variáveis encarregaram-se de garantir que se produziam sinestesias – cores que cantam ao lado de sons que pintam...

Na peça de Diogo Alvim, encomenda do Projecto DME com o apoio do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, o maestro é dispensado. São os músicos que se entendem entre si e desenham no espaço diferentes formas (sonoras e visuais). Os cinco do Ensemble DME foram, neste caso, Marina Camponês (flauta), Carlos Silva (clarinete), Beatriz Costa (violino), Ângela Carneiro (violoncelo) e Francisco Cipriano (percussão). De uma posição para outra, pegam nas suas cadeiras e levam-nas para lugares diferentes na sala.

Diogo Alvim deu nomes a estas “posições” no espaço e na música: Posição 1 – Posterior (conjuntura); Posição 2 – Horizontal (constelação); Posição 3 – Paralelo (afinidade); Posição 4 – Sobre (argumento). Não são andamentos, mas antes secções de um todo móvel, que exploram e repegam em determinados elementos musicais de base. Esses elementos são “reconfigurados numa nova ordem” em cada posição. A escrita mantém um ideal de transparência e aposta em grande medida na combinação tímbrica – ou melhor, nas intersecções, como na geometria - dos instrumentos do ensemble. Os elementos repetidos (gestos e modos de tocar, mais do que motivos melódicos) surgem a uma nova luz em cada “posição”, sugerindo novas relações entre os instrumentos e algumas surpresas quando o olhar do espectador também é desafiado: será o violino a tocar? Não temos a certeza, porque a intérprete mudou de lugar e não vemos o seu gesto.

Apesar da clareza e da simplicidade do dispositivo, são deixadas algumas possibilidades “abertas” aos intérpretes, que têm uma certa liberdade improvisatória. Peça que se pretende assumidamente “presente”, no sentido de ocupar conscientemente um espaço (e não partir do princípio de um “palco” inquestionado), de jogar com a presença corporal dos intérpretes, mas também de ser uma peça decididamente contemporânea na sua forma, no seu carácter e no seu dispositivo. Como escreveu o próprio compositor (que se interessa há muito pelas relações entre a música e a arquitectura, entre o som e o espaço), trata-se de fazer uma “exploração do som enquanto fenómeno actual, presente e situado”. Com posições que têm um lado literal e descritivo (posterior, horizontal, paralelo...) mas que não eliminam o seu lado poético e – talvez – filosófico (conjuntura, constelação...).

O oposto de toda a retórica romântica, de todo o ímpeto modernista, Posição Relativa é uma peça de uma simplicidade contagiante. Ela tem afinidades com outras peças daquele programa (Sciarrino, Clementi, Scelsi), apenas no sentido em que investiga “dentro” do som. Mas ela comunica connosco de uma forma diferente, mesmo para a chamada “música contemporânea”, num gesto simples de presença e liberdade.

A comunicação grandiosa e atormentada da Sinfonia 2022 de Nuno Côrte-Real, ávida de expressar a sua preocupação com o presente e o futuro da humanidade, está nos antípodas de Posição Relativa de Diogo Alvim, gesto artístico literal e poético, onde o pensamento se põe em movimento no espaço e a filosofia é toda outra, linguagem simples de presença consciente e de acção livre. Afinal podemos comparar alhos com bugalhos.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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