2022.11.18 · O'culto da Ajuda, Lisboa · Festival Música Viva 2022
Sond'Ar-te Electirc Ensemble sob a direção de Pedro Neves
Camila Mandillo (soprano), Sílvia Cancela (flauta), Nuno Pinto (clarinete), João Dias (percussão),
João Casimiro de Almeida (piano), Vítor Vieira (violino), Válter Freitas (violoncelo),
Miso Studio (desenho de som e electrónica em tempo real)
O desafio hodierno da música viva
PEDRO BOLÉO
Música Viva 2022 · © Miso Music Portugal
Festival Música Viva 2022 · © Miso Music Portugal

O festival Música Viva, este ano na sua 28.ª edição, continua a ser um lugar de encontro e escuta da música nova. Um festival que gravita em torno da criação musical mais actual, para lhe dar ouvidos e pensamento, isto é, alargar os horizontes da nossa sensibilidade ao mesmo tempo que permite confrontar estéticas e perspectivas, propor e explorar territórios inauditos. Terrenos arriscados, “sem garantia”, que é preciso pisar mesmo sabendo dos tropeções que se podem dar, como sugeriu Miguel Azguime nas palavras com que abriu o festival. O concerto inaugural, com duas estreias absolutas, foi sinal dessa abertura ao risco, mas um risco (bem) calculado.

Tudo começou com uma obra do próprio Miguel Azguime, Aliterações de água, de 2017, peça para soprano solo e electrónica ao vivo que foi uma delícia ouvir na voz de Camila Mandillo, jovem soprano com uma capacidade vocal e uma força expressiva em grande expansão. Sons de vogais, sem obstrução, lançam o rio de Aliterações de água que desaguará, mais tarde, num poema que é texto e pretexto para um amplo jogo fonético e musical (“Aliterações de água sopros fluxos/ Silenciosamente simples quase sibilos/ Em si sussurradamente seguindo o sul/ Da luminosidade líquida e vidente visível”). Bravissima, numa peça de dificuldade técnica elevada, Camila Mandillo pôs as aliterações (quer dizer, as repetições de sons numa frase) a ganharem corpo e sentido de forma cuidada, nunca deixando cair as vivas e viajantes vogais voadoras da voz ao chão.

Sond'Ar-te Electric Ensemble · © Perseu Mandillo
Sond'Ar-te Electirc Ensemble · © Perseu Mandillo

Logo a seguir, veio o Sond'Ar-te Electirc Ensemble, agrupamento “da casa” (também dirigido artisticamente por Miguel Azguime), que tocou All endings are sad, all endless things are impossible to bear, obra de Luís Salgueiro em estreia absoluta. Uma peça com um ímpeto poético e filosófico, com “tradução” em música: como pode a música acabar? Como pensar o lugar das cadências, das interrupções, dos cortes, inventando uma nova gramática musical? Tudo se joga aqui nas ligações tímbricas, em estreita colaboração com a electrónica, com um sexteto de piano, violoncelo, violino, flauta, clarinete e percussão. A certa altura identificamos na electrónica sons de respirações e risos, enquanto os instrumentos prosseguem o seu trabalho de constante re-ligação de gestos pequenos, aparentemente fragmentários, que tecem, no fim de contas, uma temporalidade própria. Mais do que um diálogo entre eles, é um caminho comum que têm de descobrir, e um momento para se interromper. Mais do que um fim (no sentido de um objectivo), o que emerge é o prazer (sempre fugidio, afinal) de “estar” no movimento do som. Talvez o tal riso fosse um sinal desse prazer sempre incompleto que é tocar e ouvir música. Admirável peça para uma esplêndida interpretação do Sond'Ar-te com a direcção de Pedro Neves.

Na segunda parte do concerto, houve a estreia de uma obra de Paulo Ferreira-Lopes, Die sieben Worte Jesu Christi am Kreuz (“As sete palavras de Cristo na cruz”), uma peça ambiciosa para um texto muitas várias vezes musicado (Schütz, Pergolesi, Haydn, César Franck... e mais perto de nós Tristan Murail, por exemplo). “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”, ouve-se logo no início. E a obra desdobra-se depois, placidamente, interrompida apenas pelas palavras do texto bíblico em alemão e em português. Obra de silêncios e suspensões, plenamente reflexiva e convidativa à reflexão. Alguns ataques súbitos e gestos repetidos (mas quase sempre discretos, por vezes em pianissimo) interrompem e suscitam interrogações, deixando-nos expectantes. Convite à meditação? De repente pusemo-nos a ouvir esta peça como se ela fosse uma reflexão sobre a própria criação artística. Como se dissesse, parafraseando o texto bíblico: “Ponho-me nas tuas mãos, música...”

O concerto terminou com o regresso de Camila Mandillo, agora acompanhada pelo Sond'Ar-te para a recriação de Voi(REX) de Phillipe Leroux, uma peça de 2002 (estreada em 2003) para sexteto, soprano e electrónica. Uma peça muito exigente para os intérpretes, construída a partir da decomposição e análise de elementos vocais (a partir de gravações da voz que fornecem os elementos harmónicos da peça). E aqui, no Música Viva, foi tocada brilhantemente pelos intérpretes, num tour de force do Sond'Ar-te Electirc Ensemble e da soprano. Voi(REX) tem partes em que restam intactos os belos poemas que lhe deram origem (retirados de Le testament des fruits, de Lin Delpierre), mas muitos outros momentos em que os jogos fonéticos são levados ao extremo, desmontando as palavras até ao limite: “Une lumière brûle les bords de ta voix” (“Uma luz queima as arestas da tua voz”)...

Nalgumas das cinco partes da obra foram as próprias letras (a sua forma, o seu desenho) que conduziram à estruturação musical. Na espectacular parte final de Voi(REX), os músicos voltam a exibir o seu virtuosismo, mas um virtuosismo nunca vazio, ao serviço da poesia e da música. Perto do fim, Camila Mandillo escreve no ar uma parte do poema com um gesto, como é pedido na partitura. E antes do sopro final de soprano, ouvimos: “Cependant, le travail continue, vers l'inachevé” – “Contudo, o trabalho continua, em direcção ao inacabado”. Um belo início deste Música Viva, hodierno desafio (em aberto) à escuta da criação contemporânea.

PS: Que um projecto artístico de excepção como o Sond'Ar-te Electric Ensemble esteja hoje em risco por falta de financiamentos públicos, como foi anunciado no início do concerto, é um sinal grave de desleixo e de incompreensão do magnífico trabalho desenvolvido por este projecto que tem de poder continuar.

(Petição pela Continuidade e Sustentabilidade do Sond'Ar-te Electric Ensemble)

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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