2022.11.04-05 · Teatro Aberto, Lisboa
FE..DE..RI..CO..., de Constança Capdeville
Criação – Constança Capdeville (1987)
Re-criação do espectáculo original a partir da investigação de Filipa Magalhães
Filipa Magalhães e Élio Correia (recriação cénica, produção)
Com: Ângelo Cid Neto (movimento), Inês Filipe (piano), Joana Manuel (actriz), Mário Franco
(contrabaixo) Miguel Maduro-Dias (voz), Taíssa Poliakova Cunha (piano/ percussão)
Uma subversão de Constança na sala azul
PEDRO BOLÉO
Joana Manuel · FE..DE..RI..CO..., Teatro Aberto, Lisboa · © André Roma
Joana Manuel · FE..DE..RI..CO..., Teatro Aberto, Lisboa
© André Roma

Espectadores equivocados pensavam ir ver o actor Miguel Guilherme. “Esse espectáculo é na sala vermelha, esta é a azul”, explica o rapaz que trabalha no teatro. Os equivocados saem apressados da sala. Logo a seguir começava o prólogo de FE...DE...RI...CO..., com um bailarino entrando em palco, descendo à plateia e saindo depois apressadamente, também ele, pela porta de emergência. Uma provocação artística que o episódio do engano real tornou ainda mais engraçada. Parecia uma citação de El Público, uma peça de Federico García Lorca que também é citada no espectáculo a que se refere este texto. Vida e arte cruzando-se, confundindo-se.

O Teatro Aberto acolheu nos dias 4 e 5 de Novembro FE...DE...RI...CO..., um espectáculo original de Constança Capdeville estreado em 1987 (a propósito do 50.º aniversário da morte de Federico Garcia Lorca) e agora “reconstruído” por uma equipa de artistas e investigadores, incluindo antigos colaboradores da compositora. Um espectáculo incluído no Festival Criasons IV (Musicamera Produções), dedicado à música de câmara portuguesa contemporânea.

Miguel Maduro-Dias, Inês Filipe, Taíssa Poliakova, Mário Franco · FE..DE..RI..CO..., Teatro Aberto, Lisboa · © André Roma
Miguel Maduro-Dias, Inês Filipe, Taíssa Poliakova, Mário Franco
FE..DE..RI..CO..., Teatro Aberto, Lisboa · © André Roma

Refazer um projecto antigo levanta problemas técnicos (por exemplo a reconstituição das partes sonoras pré-gravadas em novos suportes) e questões de “arqueologia” musical e teatral, na combinação dos estudos de teatro e da investigação musicológica. Mas também convoca um esforço imagético e de re-escuta em que a memória dos que acompanharam o trabalho de Constança Capdeville tem um papel importante. Não se trata apenas de tentar “fazer como ela fez” (coisa impossível, aliás, e ainda mais num espectáculo performativo deste tipo, em que ela própria entrava!), mas de torná-lo actual, mostrá-lo hoje, captar a força de uma atitude, de uma maneira de fazer e de estar que caracterizava o trabalho subversivo e a criação irrequieta de Constança Capdeville.

Os amigos dizem só “Constança”, sinal de uma proximidade afectiva que dispensa apelido (apesar de “Constança” ser nome artístico!...) Esses, que com ela colaboraram ou que estudaram a sua actividade artística, sabem que em qualquer reapresentação da sua obra, em qualquer homenagem, em qualquer peça sua, é preciso resgatar a irreverência. Sabem que essa é mesmo a única maneira de fazer justiça ao seu trabalho de reinvenção constante e procura de novas formas, no seu tempo deliberadamente provocadoras do status quo musical e de todo o academismo.

Miguel Maduro-Dias, Ângelo Cid Neto · FE..DE..RI..CO..., Teatro Aberto, Lisboa · © André Roma
Miguel Maduro-Dias, Ângelo Cid Neto
FE..DE..RI..CO..., Teatro Aberto, Lisboa · © André Roma

A “recriação cénica” foi assumida não por uma encenadora profissional, mas pela investigadora Filipa Magalhães (do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa) e o produtor Élio Correia (produtor na Escola de Música do Conservatório Nacional). Com a colaboração de outros, como Carlos Alberto Augusto, Brian MacKay e António de Sousa Dias (consultores artísticos e musicais), ou Luís Pacheco Cunha e Mariana Silva Godinho (produção), para além de Anabela Gaspar (luz), Henrique Lobo de Carvalho (som), André Roma (imagem). Toda a gente foi importante para dar corpo a este FE...DE...RI...CO... que é impossível não ver como mais uma dádiva conjunta à memória de Constança Capdeville. Dupla homenagem, já que o espectáculo é também (mas não só) um tributo a Lorca, pensado originalmente para assinalar os 50 anos da sua morte (que na verdade foi em 1936). Que seja uma criadora irreverente (Constança Capdeville) a adoptar a forma “homenageadora” e a marcar um “aniversário da morte” será uma contradição? Talvez só aparente, já que os gestos subversivos mais conscientes sabem de si mesmos terem história, raízes e gestos que vêm de trás.

Surpreende talvez mais que um espectáculo assim não ponha a morte de Federico García Lorca aos 38 anos como um acontecimento político em primeiro lugar: a sua denúncia por falangistas (por estar do lado dos republicanos) e o seu assassinato, apesar de ter acontecido em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, tornou-se símbolo e está intimamente ligado ao golpe anti-democrático contra a República espanhola (e a Frente Popular que venceu as eleições) e à tragédia da Guerra Civil Espanhola que se inicia precisamente em 1936 e que terminará com a vitória do campo fascista. Constança Capdeville preferiu ir por outro caminho.

Um caminho de poesia e música, “em quinze sequências”, numa montagem de elementos díspares, que vão de desenhos de Lorca projectados a uma canção de embalar, dos sons da água aos do piano, de excertos de textos teatrais a pequenos poemas, um espelho, uma citação de um quadro de Salvador Dalí, um canto, um pregão andaluz, uma peça de Satie, outra de Capdeville, ou um simples “Ay amor...” Trata-se de criar um ambiente estético de sensações delicadas, feito de distâncias e aproximações súbitas (e mergulhos no universo poético de Lorca). Nesta recriação realizada no Teatro Aberto isso foi plenamente conseguido, com alguns momentos verdadeiramente certeiros (e capazes de emocionar, como a Canção dos Ceifeiros, logo no início) na combinação da atitude teatral com a escuta sensível que se propunha. Com humor e invenção (por exemplo n´O passeio de Buster Keaton). São pequenos gestos, pequenos elementos, pequenas coisas que nos chamam a atenção aos olhos e aos ouvidos, mesmo os que vêm dos “grandes” instrumentos, contrabaixo e piano de cauda. Montagem e desmontagem, a abrir caminho no teatro-música de Constança Capdeville.

Elementos que hoje não vemos como novos (tocar com as mãos dentro do piano ou usando berlindes, por exemplo), mas que ainda têm força e sentido: por exemplo um corpo quase nu rastejando em cima de um piano de cauda, do bailarino Ângelo Cid Neto, que desenhou durante o espectáculo um movimento de rigor e liberdade, na esteira do que havia feito na estreia João Natividade. Uma actriz que (quase) nada diz, mas tudo escuta, e que é central no seu silêncio (Joana Manuel). E depois os músicos e performers Inês Filipe (piano), Mário Franco (contrabaixo), Miguel Maduro-Dias (voz) e Taíssa Poliakova (piano e percussão), impecáveis nas suas “tarefas”, mas sobretudo juntos como uma equipa cénica e musical completa, dialogante, discretamente festiva. São performers e contra-regras, fazem o trabalho todo, deixam de ser só especialistas e passam a ser gente que vive na arte, pela arte, com a arte. Porque as propostas de teatro-música de Constança, e com isso ainda podemos aprender hoje, são um acto colectivo de alegria e construção, mesmo quando é de descontruir que se trata. Um gozo simples que se pode transmitir, no seu desvio pelas formas esperadas e no seu desrespeito pelos academismos, na sua audácia poética que tudo pode fazer colidir, como numa colagem surrealista. Uma alegria ainda na sua des-hierarquização de todos os materiais – o erudito e o popular, o rico e o pobre, o nobre e o vulgar, o trágico e o humorístico, o prosaico e o poético, o simbólico e o explícito. Tudo através da conjugação ardilosa das artes (visuais e sonoras), com teatro, música e dança a saírem dos seus lugares habituais para ocupar as margens e alargar as nossas percepções embotadas.

Federico García Lorca terá ouvido um dia sussurrar o seu nome ao ouvido, sílaba a sílaba. Assustou-se. Ao virar-se nada viu, a não ser o vento numa árvore. Foi o som desse vento na árvore que lhe pareceu, afinal, o seu nome. O título de FE...DE...RI...CO... é, em sim mesmo, um elogio da escuta. Leve e delicado como o vento e como este espectáculo-colagem-poema que encheu de cores vermelhas a sala azul.

Um trabalho que é actual hoje, 35 anos depois de ter sido apresentado no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, no ACARTE. Devia ter ficado envelhecido, talvez, se tivéssemos social e artisticamente progredido mais (haverá “progresso” na arte?). Mas não, não ficou envelhecido. Permanece como uma proposta de reabertura do sensível e dá vontade de fazer. Repito, com outro tom (como se faz, com humor, na peça) para que se entenda melhor: dá vontade de fazer. Porque é um apelo colectivo e vivo (não se chamava mesmo ColecViva o grupo que originalmente o fez?) à criação sem freios. Esse apelo permanece: que a música e o som se possam tornar teatro (e vice-versa, porque o teatro também soa e ecoa), e que se possa nesse caminho tomar toda a liberdade. Delicada e amorosamente. De Lorca a Capdeville, de Capdeville ao presente. Peguemos, de maneiras novas, nessa atitude de independência, vida e subversão.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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