2022.05.23 · O'culto da Ajuda, Lisboa
Retrato · Isabel Soveral [e Convidado · António Chagas Rosa]

Sond'Ar-te Electric Ensemble sob a direcção de Pedro Carneiro
Camila Mandillo (soprano), Sílvia Cancela (flauta), Nuno Pinto (clarinete)
João Dias (percussão), Elsa Silva (piano)
Vítor Vieira (violino), Jorge Alves (viola), Luís André Ferreira (violoncelo)
Miguel Azguime (desenho de som), Miso Studio (electrónica)
Isabel Soveral: Um retrato com amigos
PEDRO BOLÉO
Isabel Soveral · © Sofia Moraes
Isabel Soveral · © Sofia Moraes

Este Retrato de Isabel Soveral começou a ser desenhado da melhor forma, com Elsa Silva ao piano, tocando um Fragmento de 1984 com uma clareza tal que parecia ver-se a obra e a sua criadora fazendo-a. Juntou-se-lhe depois Luís André Ferreira, no violoncelo, para as versões recentes (de 2019) para piano e violoncelo de mais dois Fragmentos. Na música, um retrato assim não prescinde dos intérpretes – também eles são criadores, nunca é demais lembrar. Delicada e decididamente, os dois intérpretes deram vida nova a obras que parecem já longínquas, pois a linguagem musical da Isabel Soveral de agora já não é bem aquela. A compositora tem hoje um conjunto de obras de câmara (com ou sem electrónica) que parece traçar um caminho coerente, mas sempre à procura do passo seguinte, como se colocasse a si mesma os desafios que a fazem andar e... metamorfosear-se.

Ouvimos depois Mémoires d'Automne – Tableau I, peça para marimba de 1999. Um passo mais na procura tímbrica, neste caso obrigando o percussionista a uma bela dança, por exemplo para tocar nos extremos grave e agudo da marimba esticando bem os braços (e não são só braços: é preciso jogo de pernas para tocar marimba...) João Dias deu muito bem conta dos contrastes entre os pianíssimos delicados, os gestos afirmativos e as cores que estas “memórias de outono” convocam. O que passou ainda está vivo? A peça de Isabel Soveral sugere-nos que o passado pode estar aqui connosco se for reactivado – mas atenção, é preciso a experiência nova para trazer o que mais importa.

António Chagas Rosa · © Bruno Nacarato
António Chagas Rosa · © Bruno Nacarato

Este era um retrato especial, para o qual a compositora chamou um amigo, António Chagas Rosa. Miguel Azguime, na apresentação do concerto, falou de “afinidades afectivas e afinidades electivas”, “proximidades e oposições estéticas” que justificavam a presença de uma obra de António Chagas Rosa no centro deste Retrato. Retrato com amigo(s), portanto: e o quadro muda de figura. Como se Isabel Soveral quisesse sublinhar que não está sozinha neste seu caminho de investigação e expressão. E assim um retrato musical se enriquece de cumplicidades, amizades, diálogos.

E com uma sorte adicional para os espectadores-ouvintes: era uma peça absolutamente nova, encomenda recente do Sond'Ar-te Electric Ensemble a António Chagas Rosa. Foi a Suite Pentolítica, título que o compositor considera ter algum sentido de humor: são “cinco pedras”, cinco andamentos para cinco monólitos alentejanos que impressionaram o compositor “desde miúdo”, como ele explica na breve nota sobre a obra. “Mais do que as pedras em si, o que me intriga são os rituais que as puseram lá e aos quais nós nunca assistimos”, escreve o compositor. E assim justifica a sua ideia de compor cinco “rituais sonoros” para essas pedras únicas. E para a singularidade do Sond'Ar-te Electric Ensemble que António Chagas Rosa conhece bem. A obra abre com uma profusão de timbres, numa viva e misteriosa abertura que chama todos os músicos a reunirem-se à volta da primeira pedra. Na segunda clarifica-se o lado “ritualístico” da obra, desembocando numa intervenção quase solística de clarinete-baixo, admiravelmente tocada por Nuno Pinto e complementada por uma importante percussão (de novo João Dias). O Sond'Ar-te (com violino, viola, violoncelo, piano, clarinete, flauta e percussão) cresce de novo no terceiro andamento, para instalar depois um ritual aparentemente mais calmo (mas abundantemente colorido) na quarta pedra, numa sequência “concertante” extremamente bem estruturada. E de novo o ritual se faz dança, num vivíssimo e rápido crescendo. Tudo se passa rapidamente na profusão de cores e de gestos colectivos, brilhantemente interpretados às mãos do Sond'Ar-te. Rápido demais? Apetecia saborear todas as cores do som (será cobalto, carmim, ou canário?) e quase não temos tempo...

Um retrato é sempre uma imagem incompleta, e é claro que num concerto de câmara faltaria sempre o trabalho orquestral de Isabel Soveral. Mas as obras escolhidas apontam alguns traços fundamentais da sua composição e da sua pesquisa, mesmo para orquestra. Construção de tecidos sonoros, por exemplo, como os de Le Navigateur du Soleil Incandescent – Quatrième Lettre, peça de 2010, a partir de textos de Al Berto (de 1979). A peça inclui flauta, clarinete, violino, violoncelo, piano e uma electrónica bastante presente, quase “pesada” e cheia (nalguns momentos sozinha), incluindo uma leitura gravada e espacializada (na voz de Miguel Azguime) de excertos do forte poema de Al Berto, onde convivem e conflituam a vontade de fuga e um ardente corpo presente. Peça magnífica, com uma dúzia de anos, mas que parece já doutro tempo, quando ouvimos a mais actual Salsugem, também baseada em poemas de Al Berto, mas com uma perspectiva bastante distinta.

Trata-se agora de construir “instrumentos híbridos” (quer dizer, “instrumentos” feitos de vários instrumentos), sonoridades sugeridas pelo trabalho na electrónica de Isabel Soveral. Esse é talvez o traço formal mais importante de Salsugem – 2.º quadro, com que o Sond'Ar-te terminou o concerto. Era a obra mais recente, uma encomenda da Miso Music Portugal, também em estreia. Aqui voltou todo o Sond'Ar-te (viola d'arco e percussão incluídos), acrescentado ainda da voz de soprano de Camila Mandillo. Voz que começa em plena igualdade com os outros instrumentos, numa belíssima – e potente – construção sonora de Isabel Soveral, levada ao detalhe no tratamento tímbrico da voz e de todos os instrumentos. Foi o momento alto do concerto, este segundo quadro de Salsugem, onde emerge a pouco e pouco a poesia sempre deslocada, fugitiva e à flor da pele de Al Berto: “ici la mer mange mon corps” (“aqui o mar come o meu corpo”). Ou, noutra passagem: “j'habite ce pays par erreur. mais viens me voir si tu veux.” (“habito este país por erro. mas vem ver-me se quiseres”).

E o Retrato (com amigos) ficou assim completo, abrindo caminho... Enquanto esperamos as orquestras que toquem a música futura de Isabel Soveral, aplaudamos o Sond'Ar-te sob a direcção de Pedro Carneiro por este concerto de chama exacta.

Gravações do concerto disponível na secção Media – Vídeos: >> ligação

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