Este Retrato de Isabel Soveral começou a ser desenhado da melhor forma, com Elsa Silva ao piano, tocando um Fragmento de 1984 com uma clareza tal que parecia ver-se a obra e a sua criadora fazendo-a. Juntou-se-lhe depois Luís André Ferreira, no violoncelo, para as versões recentes (de 2019) para piano e violoncelo de mais dois Fragmentos. Na música, um retrato assim não prescinde dos intérpretes – também eles são criadores, nunca é demais lembrar. Delicada e decididamente, os dois intérpretes deram vida nova a obras que parecem já longínquas, pois a linguagem musical da Isabel Soveral de agora já não é bem aquela. A compositora tem hoje um conjunto de obras de câmara (com ou sem electrónica) que parece traçar um caminho coerente, mas sempre à procura do passo seguinte, como se colocasse a si mesma os desafios que a fazem andar e... metamorfosear-se.
Ouvimos depois Mémoires d'Automne – Tableau I, peça para marimba de 1999. Um passo mais na procura tímbrica, neste caso obrigando o percussionista a uma bela dança, por exemplo para tocar nos extremos grave e agudo da marimba esticando bem os braços (e não são só braços: é preciso jogo de pernas para tocar marimba...) João Dias deu muito bem conta dos contrastes entre os pianíssimos delicados, os gestos afirmativos e as cores que estas “memórias de outono” convocam. O que passou ainda está vivo? A peça de Isabel Soveral sugere-nos que o passado pode estar aqui connosco se for reactivado – mas atenção, é preciso a experiência nova para trazer o que mais importa.
Este era um retrato especial, para o qual a compositora chamou um amigo, António Chagas Rosa. Miguel Azguime, na apresentação do concerto, falou de “afinidades afectivas e afinidades electivas”, “proximidades e oposições estéticas” que justificavam a presença de uma obra de António Chagas Rosa no centro deste Retrato. Retrato com amigo(s), portanto: e o quadro muda de figura. Como se Isabel Soveral quisesse sublinhar que não está sozinha neste seu caminho de investigação e expressão. E assim um retrato musical se enriquece de cumplicidades, amizades, diálogos.
E com uma sorte adicional para os espectadores-ouvintes: era uma peça absolutamente nova, encomenda recente do Sond'Ar-te Electric Ensemble a António Chagas Rosa. Foi a Suite Pentolítica, título que o compositor considera ter algum sentido de humor: são “cinco pedras”, cinco andamentos para cinco monólitos alentejanos que impressionaram o compositor “desde miúdo”, como ele explica na breve nota sobre a obra. “Mais do que as pedras em si, o que me intriga são os rituais que as puseram lá e aos quais nós nunca assistimos”, escreve o compositor. E assim justifica a sua ideia de compor cinco “rituais sonoros” para essas pedras únicas. E para a singularidade do Sond'Ar-te Electric Ensemble que António Chagas Rosa conhece bem. A obra abre com uma profusão de timbres, numa viva e misteriosa abertura que chama todos os músicos a reunirem-se à volta da primeira pedra. Na segunda clarifica-se o lado “ritualístico” da obra, desembocando numa intervenção quase solística de clarinete-baixo, admiravelmente tocada por Nuno Pinto e complementada por uma importante percussão (de novo João Dias). O Sond'Ar-te (com violino, viola, violoncelo, piano, clarinete, flauta e percussão) cresce de novo no terceiro andamento, para instalar depois um ritual aparentemente mais calmo (mas abundantemente colorido) na quarta pedra, numa sequência “concertante” extremamente bem estruturada. E de novo o ritual se faz dança, num vivíssimo e rápido crescendo. Tudo se passa rapidamente na profusão de cores e de gestos colectivos, brilhantemente interpretados às mãos do Sond'Ar-te. Rápido demais? Apetecia saborear todas as cores do som (será cobalto, carmim, ou canário?) e quase não temos tempo...
Um retrato é sempre uma imagem incompleta, e é claro que num concerto de câmara faltaria sempre o trabalho orquestral de Isabel Soveral. Mas as obras escolhidas apontam alguns traços fundamentais da sua composição e da sua pesquisa, mesmo para orquestra. Construção de tecidos sonoros, por exemplo, como os de Le Navigateur du Soleil Incandescent – Quatrième Lettre, peça de 2010, a partir de textos de Al Berto (de 1979). A peça inclui flauta, clarinete, violino, violoncelo, piano e uma electrónica bastante presente, quase “pesada” e cheia (nalguns momentos sozinha), incluindo uma leitura gravada e espacializada (na voz de Miguel Azguime) de excertos do forte poema de Al Berto, onde convivem e conflituam a vontade de fuga e um ardente corpo presente. Peça magnífica, com uma dúzia de anos, mas que parece já doutro tempo, quando ouvimos a mais actual Salsugem, também baseada em poemas de Al Berto, mas com uma perspectiva bastante distinta.
Trata-se agora de construir “instrumentos híbridos” (quer dizer, “instrumentos” feitos de vários instrumentos), sonoridades sugeridas pelo trabalho na electrónica de Isabel Soveral. Esse é talvez o traço formal mais importante de Salsugem – 2.º quadro, com que o Sond'Ar-te terminou o concerto. Era a obra mais recente, uma encomenda da Miso Music Portugal, também em estreia. Aqui voltou todo o Sond'Ar-te (viola d'arco e percussão incluídos), acrescentado ainda da voz de soprano de Camila Mandillo. Voz que começa em plena igualdade com os outros instrumentos, numa belíssima – e potente – construção sonora de Isabel Soveral, levada ao detalhe no tratamento tímbrico da voz e de todos os instrumentos. Foi o momento alto do concerto, este segundo quadro de Salsugem, onde emerge a pouco e pouco a poesia sempre deslocada, fugitiva e à flor da pele de Al Berto: “ici la mer mange mon corps” (“aqui o mar come o meu corpo”). Ou, noutra passagem: “j'habite ce pays par erreur. mais viens me voir si tu veux.” (“habito este país por erro. mas vem ver-me se quiseres”).
E o Retrato (com amigos) ficou assim completo, abrindo caminho... Enquanto esperamos as orquestras que toquem a música futura de Isabel Soveral, aplaudamos o Sond'Ar-te sob a direcção de Pedro Carneiro por este concerto de chama exacta.
Gravações do concerto disponível na secção Media – Vídeos: >> ligação
>> Topo
|