Fui convidado, como compositor, pelo ex-Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo, o ilustre médico Dr. Defensor Moura e pelo inventor de instrumentos-escultura, João Ricardo, a fazer uma visita à sua exposição no piso térreo dos míticos espaços dos Antigos Paços do Concelho da cidade. A própria Câmara teve a generosidade para com o inventor e escultor de sons de alargar o prazo da exposição permitindo assim, ao compositor Cândido Lima, a disponibilidade de deslocação do Porto a Viana do Castelo para visitar essa intitulada “Exposição plástica sonora/ OBJECTOS SONOROS MALcriados”.
Ao longo dos anos fui ouvindo referências mais ou menos epidérmicas sobre este escultor de sonoridades extraídas de instrumentos criações suas. Habitantes da cidade e homens de televisão, de forma mais ou menos velada, fugidia, superficial e paternalista, em reportagens aqui e além, iam apontando curiosidades dispersas da sua actividade incomum ao construir, como um artesão sui generis, instrumentos inéditos que o próprio concebia e esculpia. Aquela figura esguia e escultórica marginal, via-a ao longe do tempo nos espaços de reportagens televisivas, nunca imaginando que era originário da minha cidade natal, embora a dez quilómetros de distância da minha aldeia, e que um dia o iria encontrar e com ele conversar sobre a sua arte.
Nessa manhã do dia 23 de Maio de 2021, atraiu-me a elegância da exposição e a luminosidade daquele lugar de inesquecíveis memórias pessoais (Festival de Música Electroacústica/ 1981 e Semanas de Música dos fins da década de 80). Logo de início nasceu um longo diálogo com o ilustre vianense, durante o qual me deu a conhecer, a pergunta minha, as origens da sua irreprimível atracção, desde criança, pela experimentação dos sons que o rodeavam («sons urbanos», esclarece, já que era originário da cidade). Marcado pelo empirismo, pelo pragmatismo e pela intuição na riquíssima gama de sons que me foi fazendo ouvir pude, através da observação e da audição daquela espécie de orquestra de orquestras de percussões ressonantes, estabelecer paralelismos nestas reminiscências e confluências com os mundos experimentais das artes do séc. XX, dos mais informais e radicais de geniais artesãos até aos mais sofisticados meios orquestrais; ou vindos da frenética evolução das tecnologias emergentes. Não me pareceu, porém, interessado em sair para o exterior de si, legitimamente fascinado e rodeado pelas suas criações envolventes, dotadas de verdadeira magia para o público e para o músico. Particularmente sedutor nestas esculturas sonoras é a sua dupla face, ou a sua dupla propriedade, que são as estéticas dos seus instrumentos concebidos ao mesmo tempo como objectos de olhar e como objectos de ouvir. Os mundos da escultura e da acústica. Não sei se esta legitimação ou caracterização que eu, como músico e observador-espectador, destaco dos seus trabalhos, lhe interessará muito...
Do artista-artesão de Viana, estas esculturas como fonte de produção sonora a partir de objectos do nosso quotidiano a-musical, “lixo-luxo”, como lhe chama, duas filosofias de vida de sinal contrário, encontramo-las em várias culturas da terra e em vários movimentos de ecologistas, em Portugal em lugares perto de nós. Usando a expressão do cartaz da exposição, objectos de toda a natureza usados como instrumentos, fontes de resultados infinitos, são matéria-prima na exploração electrónica de uma infinidade de compositores e de amadores. No país onde vive alternadamente com Portugal o nosso músico escultor, a Alemanha, vários compositores, como Wilfried Jentzsch, que chegou a ir a Viana do Castelo durante a V Semana de Música, escreveram composição electrónica a partir de esculturas reais como fontes sonoras criando uma simbiose entre som e matéria, entre arte do tempo, música, e arte do espaço, escultura.
As experiências sobre a transformação dos instrumentos de orquestra clássica são incontáveis ao longo dos últimos dois séculos. Uma necessidade irresistível da imaginação humana levou a criação de sons inimagináveis, não só tendo o instrumento como protagonista, mas tendo a linguagem musical como protagonista impondo aos instrumentos combinações infinitas de novos sons e novas sonoridades vindas de compositores dotados ou não de génio inovador.
Nesta visita enquadrei esta panóplia rica de sons e de instrumentos entre acústicas e espaços sonoros não convencionais na história da música europeia do séc. XX, e ocorreram-me os movimentos revolucionários nas artes do pós-romantismo, de nomes como Russolo, Marinetti e o futurismo musical, entre outros «ismos» das artes do tempo, como o «motorismo» e a arte mecânica ou arte maquinista, real e simulada, como mostram as obras de Mossolof e Honnegger, até à música concreta de Pierre Schaeffer e da sua Escola do Groupe de Recherches Musicales (GRM).
Evoquei o compositor Varèse e as suas premonições tecnológicas simuladas na sua linguagem musical e lembrei, sobretudo, compositores do teatro musical de vanguarda do pós-ano 1950 das músicas experimentais, assim chamadas, da música concreta e da música electrónica, onde ramificam afinidades profundas com as pesquisas de João Ricardo, como o já citado Pierre Shaeffer e a sua escola de música concreta, com os grandes compositores e inventores de som e de instrumentos mecânicos e electrónicos como Scriabin, Cage, Stockhausen, Kagel, Schnebel, Globokar, Ligeti, Aperghis, Xenakis, Nacarrow e uma plêiade de outras figuras, músicos e não músicos, artesãos e cientistas que se envolveram na pesquisa, criação e utilização de novos instrumentos e de novas fontes que conduziram a grandes obras musicais da época contemporânea.
Atento aos sons desses instrumentos da exposição, «ouvi» música electrónica em alguns deles donde ressoavam grandes, densas e multifacetadas sonoridades, em instrumentos quase todos de percussões ressonantes accionados com a emoção de uma identificação total entre o engenheiro-inventor e essas suas percussões. De facto, os materiais utilizados em alguns casos mostravam-se ser, acusticamente, fontes de imensas virtualidades para além dos instrumentos em si, como objectos inertes. Lembrei os órgãos de «barbarie» (ler em francês, com acento no «i»...) de rua e tantos sons que o homem inventou ao logo dos tempos, usados na rua ou em grandes palcos do mundo ocidental ou de influência ocidental. Curiosamente, um dos mais extraordinários instrumentos presentes na exposição já foi usado pela Orquestra de Berlim, cidade que o artista divide com Viana do Castelo, onde reside.
João Ricardo aparece como um solitário, mas a música ocidental encontra-se nos seus caminhos e na sua paixão pelo mundo fascinante do som descoberto e bem estabelecido na prática, ou a descobrir nas zonas secretas de outra acústica que nos instrumentos clássicos teve que ser descoberta e rasgada em processos de escrita e de imaginação em diálogos entre criador, instrumento e intérprete.
No caso do meu anfitrião naquele espaço da Praça da República vi a íntima fusão entre criador e manipulador, inventor e tangedor de imaginação fértil, numa simbiose entre o lixo e o luxo, um dos arquétipos do seu programa de pesquisa e de expressão, não sei se também estética ou apenas ecológica, ou até predominantemente sensorial. Além dos instrumentos apresentados na exposição, o «compositor-inventor», como João Ricardo se autodenomina, lembra de ter construído muitos outros instrumentos que não puderam figurar na exposição, e que apresentam outras características e outras potencialidades acústicas e musicais.
Mal pude tocar, senão ao de leve, em instrumentos, e o pudor ou a delicadeza impediram-me de invadir aquelas esculturas sagradas do seu criador, ao contrário de quando, no Museu do Homem, em Paris, me foi permitido fazer soar os gamelans de Java e do Bali, ou na Catedral de Notre Dame fazer soar o grande sino apelidado de Bourdon ou, também, na Igreja Matriz de Viana, ter feito soar os sinos para a obra “MÚSICAS DE VILLAIANAS-coros oceânicos”! Naquele espaço dos Antigos Paços do Concelho organizei exposições de audiovisuais, que permitiam ao público passar e olhar tantas experiências audiovisuais em gravação, por exemplo, “L’Opéra Sauvage”, um hino à natureza animal nas savanas de África com música de Vangelis, entre outros, como os programas de televisão do autor deste texto onde a maior variedade de experiências musicais passaram durante horas e horas naquelas arcadas. Ali, agora, estávamos no meio de um cenário a aguardar um espectáculo ou uma ópera imaginária de música concreta nas águas fluviais e marítimas das terras de Viana!
À pergunta minha sobre como resguarda este arsenal raro, fui informado que os instrumentos estão embalados em armazém da Praia Norte, cedido generosamente pela Câmara Municipal de Viana do Castelo. A forte impressão que me deixou essa hora de contacto em diálogo com o criador dos instrumentos e em diálogo com os próprios instrumentos, deixou-me o desejo de que esta orquestra rara fosse também um laboratório vivo de pesquisa, uma oficina utópica, mas real, aberta em permanente diálogo com os diversos públicos de toda a natureza.
Imagino poderes diversos das áreas académicas e culturais do país, intervenientes não apenas no sentido da protecção e preservação deste legado, mas também da divulgação através da sua permanente exposição, permitindo ao público em geral e às áreas de actividade artística e de actividades culturais, usufruir de tão rica colecção aberta de instrumentos, musical e multidisciplinar, que esconde matérias para as ciências exactas e para as ciências sociais, da música, nas suas diversas manifestações, às artes em geral e sobretudo às artes do tempo e do espaço. Será uma pena tão grande riqueza musical fechada em armazém, verdadeiro laboratório de fontes sonoras de música concreta de potencialidades invulgares para os exploradores tão diversificados que abundam nas últimas décadas neste país.
*Cândido Lima, compositor, professor
Professor e ex-director dos Conservatórios de Música do Porto e de Braga
Professor Coordenador da Escola Superior de Música do Porto
Doutorado pela Universidade de Paris I-Paris I/ Sorbonne