Joana Manuel, Célia Teixeira e Rui Baeta · © Vítor Hugo Costa
...e os que sabem interessar-se por ela hão-de receber carícias e povoar o país com as suas conversas, escreve Tzara.
“Ópera-manifesto contra e a favor de tudo e decididamente sobre nada”, como declara o subtítulo desta ópera, pode dar azo a frustrações. Talvez tenhamos já sofrido demasiados reptos, o que ora nos cria indiferença ora uma ânsia bulímica por tudo e por nada. Por outro lado, Tristan Tzara discorre especificamente sobre o tudo, o nada e o seu contrário. Como ele próprio afirma *:
Para lançar um manifesto é preciso querer: A.B.C., disparar contra 1.2.3., enervar-se e aguçar as asas para conquistar e espalhar pequenos e grandes a, b, c, assinar, gritar, jurar, arranjar a prosa segundo uma forma de evidência absoluta, irrefutável, provar o seu non-plus-ultra e sustentar que a novidade se assemelha à vida do mesmo modo que a última aparição duma cocotte prova o essencial de Deus. Essa existência já foi provada pelo acordeão, pela paisagem e pela fala doce.
Impor o seu A.B.C. é uma coisa natural, — portanto lamentável. Toda a gente o faz sob a forma de cristalbluffmadona, sistema monetário, produto farmacêutico, perna nua convidando à primavera ardente e estéril.
Manifesto Dada 1918
Diatribes dadá já as ouvimos ao bêbado mais próximo, mas da balbúcie ao panfleto vai um passo e esse foi dado por aquela peculiar trupe que se reuniu em Zurique e fundou o Cabaret Voltaire a 5 de fevereiro de 1916: Hugo Ball, Emmy Hennings, Tristan Tzara, Marcel Janco, Richard Huelsenbeck, Hans Arp… Ignoramos como terá sido o pandemónio, dado que apenas sobreviveram descrições, pinturas, máscaras e manifestos. Hoje considerá-lo-íamos suave, quem sabe; mas o princípio reagente era o da provocação.
No Palácio do Sobralinho, o cabaret é outro e exige um esforço de ressintonização: no átrio, um rádio portátil toca baixinho enquanto se aguarda entrada no salão, onde um friso de verde aspargo e olho de boi falso contrasta com um cenário flash de sessão fotográfica — lençol branco, tela branca, véu branco, luzes brancas em conjuntos quadrados de focos, holofotes sur scène, manequins: contrabaixista, trompetista, saxofonista e cantor em estátua, a luz apaga para os holofotes descobrirem nova posição dos músicos, como aquele jogo do stop. DA. Duas sílabas, dois ataques simultâneos, eis DA-DA convocado em música, voz e instrumentos em consonância rítmica. DA.
Dadá é a nossa intensidade; que ergue as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebé alemão; Dadá é a vida sem pantufas nem paralelos; que é contra e a favor da unidade e decididamente contra o futuro; sabemos sabiamente que os nossos cérebros se hão-de tornar almofadas macias, que o nosso antidogmatismo é tão exclusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liberdade; necessidade severa sem disciplina nem moral e cuspimos na humanidade.
Manifesto do Senhor Antipyrina
Esta intensidade dada (dadá), encubada aqui no Palácio, é regulada em sete ou oito cenas — ou números — de entrada e saída de “palco” dos três cabaretistas declamantes; músicos e cantores estáticos trocam de lugar na tela em esgares minimais, alternam solos, duos e trios comentados pelos instrumentos sentados ao fundo que volta e meia estribilham: DA-DA. Desfilam as estrelas em aparato de fato e peruca colorida, recitando “a seco”, teatral, um texto que se pretende penetrante, mas, ou foi perdendo impacto — “O pensamento faz-se na boca”, mas não necessariamente à letra —, ou, por já termos visto fotos da bomba atómica, esse upgrade explosivo, tudo o mais soe desmaiado, ou então falhou (perdemos?) o transporte cénico-temporal para a dinâmica trocista dadá.
O aroma é de banda sonora (atmosfera aliás familiar a António de Sousa Dias), o tom irónico-jazzístico suscita-se em surdina trompetética embalada na brisa eletrónica, notas longas e efeitos de fumo, ligação funcional e agradável entre instrumentos e vozes, suaves linhas de transição contrapontística, Bachianas fugatas bem coladinhas, boa mescla de sons, construção sólida, quase apetece só ouvir e sonhar. Contracenando com um solo de contrabaixo em swing (Guilherme Reis) que embate no texto e se repercute num apontamento sax, é o fantasma de Kurt que se adivinha, começam a cantar e é mesmo Weill, chegamos ao cabaret. Mas onde está Dadá?
Tss, parece que não sabemos o que queremos, que público este; clamamos incansavelmente por boas transições, onde normalmente todos falham. Ei-las. O que foi agora?
Músicos partam os vossos instrumentos cegos em cena.
Proclamação sem pretensão
É ingrato reencenar dadá, paira continuamente o fantasma do infinito potencial abismal do absurdo. Dadá é nada é dadá. Dar estrutura a dadá é um oxímoro. Será dadá uma imagem da disrupção inalcançável? Seremos nós insaciáveis? Estaremos preparados para dadá? Dadá é um pirilampo que nos atrai no escuro, mas na hora morde-nos e ficamos desconcertados: não é isso o que um pirilampo faz. Os textos são uma casca constantemente despelada, anulam-se a si mesmos para baralhar os leitores habituados a versos lógicos. Dadá chucha em todos os temas, lambuza-se da arte à política, chateia, vence pelo cansaço. Por aqui, prossegue a confortável música de cabaret: drones baixos, sinusóides acamadas, pouco irritante, nada macerante, levemente impaciente.
Dadá não existe, pelo que nunca saberemos o que é dadá; nunca será irreverente o suficiente, nunca grotesco o suficiente, histérico o suficiente, teremos sempre de dobrar a expetativa e aplicar o devido grau de conversão, a atualização das taxas de inflação ubuesca. Como se dadá, ao projetar exageros insuflados, o tudo e o nada, A, B e o seu contrário, acertasse sempre na mouche, preconizasse o potencial de exagero niilista de aniquilação total, o absurdo mais além. É difícil perceber quais as fronteiras da disrupção; sabemos, todavia, que decorria a primeira guerra mundial, o desespero e a absurdez eram chave (cf. reflexões de Hugo Ball) naquele “cabaret” de refugiados na Spiegelgasse 1. Dadá tem coldres pesados e escouceia, usa e abusa do contrassenso para coçar o risível cauterizado na pele e nos passaportes caducados. Cem anos depois, ameaçam outros tempos loucos que, de resto, não interessam aos frequentadores de palácios e sobrais. Dadá sabe isso.
e vocês são uns idiotas/ hei de voltar como a vossa urina renascente/ à alegria de viver o vento parteiro/ e fundo um lar para sustentadores de poetas/ e torno a voltar para repetir tudo/ e vocês são todos uns idiotas
Manifesto do senhor AA o anti filósofo
Os cantores vão mudando a cena entre cada ciclo, acrescentando elementos, como auscultadores, microfones antigos e, especialmente feliz (que podia aliás ter surgido mais cedo e menos pontual), elementos gráficos da revista Dada, bem como gaiolas, pistolas, chapéus estranhos, colarinhos empolados, gestos inúteis que, esses sim, fazem sentido (?) numa ópera dadá. Quase merecia cenário mais brilhante e drástico; a contaminação do minimal que não é intrinsecamente minimal, mas forçadamente despojado, com tentativas bombásticas em pólvora seca, pozinhos de encenação almejando gritâncias e provocações que, em projetos artísticos contemporâneos de salas arrabaldinas, ora sofrem frequentemente a circunstância da verba de apoio atribuída, ora, em ciclos de pescadinha de rabo na boca, acabam por remeter a cenografia para um plano de recurso, mais flagrantemente em obras mais sensíveis ao desequilíbrio entre as fatias das artes envolvidas.
A presença dum boxeur (pelo menos) é indispensável para o match — os filiados dum bando de assassinos dadaístas assinaram um contrato de autoproteção para operações deste género. Eram em número muito reduzido — a presença dum cantor (pelo menos) para o duo, dum signatário (pelo menos) para o recibo, dum olho (pelo menos) para a vista, — era, contudo, absolutamente indispensável.
O Senhor AA o anti filósofo envia-nos este manifesto
Os músicos regressam à posição inicial, em movimentações ABA que não traem a junção de corpo e instrumentos: os cantores — Rui Baeta, Joana Manuel e Célia Teixeira —, brotando de casulos, brilhando em fatos especiais, empunhando voz, texto, cosmética e microfones, dobram-se e desdobram-se, ora em discursos veementes, ora em cantos (des)almados, de manequins articulados a mímicas galináceas; são vozes habituadas a todos os cenários e selvas, integrando-se bem, independentemente da existência de lianas onde se agarrar, tapete onde dançar, palco onde se projetar. A fila de trás ajudou, imbeliscável, destacando-se os namoros entre sax tenor e trompete (Philippe Trovão e Fábio Oliveira). O ambiente divertido da cena final devia ter contagiado os momentos anteriores: apogeu de gesticulações militarmente geométricas, clímax eletrónico (pelo próprio António de Sousa Dias), grand finale estendido de uma gravação de concerto para piano, paródia operática e luz estroboscópica até às auto-palmas dos próprios intérpretes. Ficamos às escuras, afinal não ainda para o final, mas para mais uma mudança de sala, retira-se um livro da gaiola (seria Tzara tão simbólico?) que passa de mãos em mãos e volta ao sítio; gestos para nada, dada, viva o absurdo, finalmente algo irritante; uma cantora tira os sapatos.
Vocês, todos vocês, são encantadores, muito finos, espirituais e deliciosos.
Anexo: como me tornei encantador simpático e delicioso
O insulto e auto-insulto fundam dadá; o discurso revela o gozo do texto e um interessante paradoxo: se calhar não é a ópera o lugar ideal para dadá, quando no fundo nenhum outro o poderia ser. Dadá é o desconcerto do mundo, embora provavelmente alérgica a orquestrações. Saem todos; escuro, palmas, a atriz volta, interpela o público:
V. deve-me: FR. 943.50
Silogismo colonial
Manifesto Nada, por mais que o negue, é sempre qualquer coisa, quanto mais não seja o peso de quatro letras. As duas palavras que compõem o título lutam entre si, qual delas a mais imponente; duas palavras patudas, que tropeçam na sua própria força.
A música de António de Sousa Dias propõe uma viagem possível neste universo, cortejando a desconstrução, flirtando com a colagem, namoriscando a irreverência, num piscar de olhos a diferentes expressões musicais contemporâneas ou próximas do movimento DADA e onde a lógica não é a regra.
Os verbos escolhidos para a descrição promocional — cortejar, flirtar, namoriscar, piscar — manifestam (assim em minúsculas) o que manifestam. O cruzeiro passou ao largo, pousando aqui e ali a contemplar a baía dadá numa bela noite de verão, com dançarinas no palco a abanar a anca ao foxtrot e cocktail no bar: Hello, I’m Da, Da-Dá. Como se refere, é uma viagem possível; outra teria sido: embater, penetrar, foder, rasgar. Dadá é um monstrinho fofinho bem sonso. Colar ou citar textos dadá não faz uma obra dadá, pelo menos se não for de acordo com as suas regras. Regras?
Pegue num jornal.
Pegue numa tesoura.
Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.
Agite com cuidado.
Seguidamente, retire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente
segundo a ordem pela qual foram saindo do saco.
O poema parecer-se-á consigo.
Dada Manifesto sobre o amor débil e o amor amargo: viii: Para fazer um poema dadaísta
Dadá exige tripas à mostra e micróbios no prato. Pois bem, esta ópera não vomitou o suficiente e, mais grave ainda, usou guardanapo.
Acho-me muito simpático.
Dada Manifesto sobre o amor débil e o amor amargo
* TZARA, Tristan. (1924) 1987. Sete Manifestos Dada. Traduzido por José Miranda JUSTO. Lisboa: Hiena.
As traduções dos textos para a ópera foram da responsabilidade de Rita Leite.
As citações aqui aplicadas não coincidem necessariamente com os excertos cantados.
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