Recensão Festival Música Viva [FMV'21]: duos
A floresta eletroacústica – de troncos-tripé, copas-ecrã, lianas-cabos, seiva elétrica – marca a sua presença no palco do FMV’21. Uns usam cabos para se conectarem à envolvência radicular, outros tentam a ligação acústica ao estrelato.
Do anfiteatro presenciámos: (dia 12) um solo de guitarra enleado em ramificações eletroacústicas, (dia 18) um duo de violoncelo e piano já no baldio, com tentativas arbustivas de pedagogia enxertada e finalmente, em plena clareira, (dia 20) um duo de flauta e piano com duas feiticeiras que estabeleceram finalmente o contacto com as estrelas. Tal progressão é permutável e não hierarquizante; calhou que a sucessão de concertos eclodisse, desta vez, a céu aberto.
O barrete do capuchinho
De “Asymmetric Thought – Italian music for guitar and electronics”, o concerto de 12 de novembro, mencionar-se-á apenas a primeira parte, correspondente ao título (“música italiana para eletrónica e guitarra”), dedilhada pela mão do guitarrista Davide Ficco, omitindo-se aqui, neste texto apontado aos duos, a segunda, preenchida por obras da mata eletroacústica, a serem recenseadas noutro artigo do Espaço Crítica a propósito da rubrica “EASTN-DC”, sub-festival que decorreu embutido no Festival Música Viva 2021.
Fazendo jus ao título, não só o pensamento inquinou assimétrico, como toda a performance se revelou algo desmembrada. De facto, o recital iniciou decapitado – cabeça num computador em direto, com apresentação de um dos compositores (Gianluca Verlingieri) à distância – e prosseguiu acéfalo o guitarrista, de corpo presente, deitando mãos às cordas em frouxos exercícios de crochet. Antes, italianou uma explicação da sua investigação de seis anos e respetivo CD de guitarra expandida (“extended guitar”) com ligações entre instrumento e altoparlante e microfonos que “pilotam as superfícies vibrantes, sem os quais seria impossível transportar [escutar]”. O compositor Giuseppe Gavazza traduziu e rematou o segundo projeto: uma linha genealógica tri-geracional de mestres, colegas e antigos e jovens alunos (alguns deles presentes no O’culto) ancorados no século XVI com uma peça inicial do valenciano Luys Milán (Fantasia XVI de Consonancias y Redobles) a partir da qual são construídas as gerações de peças posteriores.
Este passeio de estrutura dântica teve pouco de dantesco e mais de capuchinho vermelho desmaiado em rosa fúcsia: das colunas soa uma guitarra que a própria guitarra em palco escuta, tal música ambiente em versão acusmática; tudo idílico até à paragem abrupta nos acordar para o mundo real, “scusate”, lá vai o técnico desbloquear o monitor suspenso e, agora sim, retomemos, entremos na floresta eletroacústica. A partir daquela fantasia renascentista de “consonancias y redobles”, a peça de 1973 de Azio Corghi acusa problemas de circulação na (antiga) canalização eletroacústica: sobram esgotos eletrónicos que afogam a peça quinhentista numa guitarra extremamente amplificada. Coloca-se difícil a relação entre instrumento e a eletrónica, ou, no mínimo, a amplificação. Não será certamente um problema de obsolescência (técnica, pelo menos; quiçá de pensamento). A mão do guitarrista proíbe palmas e atira-se à terceira geração de Resonancias y Redobles de Gianluca Verlingieri, onde sobressaem melhores relações de ecos-sons que trilham caminhos próprios pelas superfícies granuladas dos túneis das colunas, em interações de (des)afinação e jogos atávicos de proximidade e afastamento em torno do contraponto de 1500
Prosseguem as Dodici corde e mezzo do colega Giuseppe Gavazza: guitarra em acordes e ressonância, gozo primordial do instrumento solitário que toca numa paisagem que passa, os reflexos nas colunas soam a música de genérico. Nada parece conseguir furar ou moldar a materialização compacta de um instrumento desenvolvido ao longo de séculos; a guitarra impermeável à eletrónica passa por ela como por um labirinto de buxos que aflora o passante num restolhar de folhas. A execução é limpa e redonda, mas não chega a outro som, apanágio frequente dos diálogos com altifalantes. Não é o caso; com Davide Ficco, uma guitarra fica uma guitarra.
Fecha o recital (esta primeira parte do solo-duo de guitarra e eletrónica) uma peça do próprio guitarrista, Aavaaye darun, com voz gravada (presença humana aliás amiúde nos exercícios eletroacústicos) a colar o tom vocal à melodia do instrumento (ao estilo de Christophe Chassol), em mistura de vozes que sobreviveria enquanto peça independente.
Esta guitarra sem garra cursou a floresta eletroacústica sem dar por ela, nem a lenha do instrumento vibrou perante o compadrio das árvores. Aliás, o próprio guitarrista é retratado na capa do CD com umas vendas nos olhos (ou óculos futuristas?), como se fosse cego. Passou cego e surdo. Mas nós tivemos de ouvir tudo.
“Asymmetric Thought – Italian music for guitar and electronics”
Quem tem medo da música contemporânea?
Se o concerto anterior congregava dois temas (guitarra expandida + sucessão dos mestres), no dia 18 de novembro o duo Σ [sigma] – Ana Cláudia Assis + Miguel Rocha – coincide no formato (dois em um) e soma “Mémoire... Miroir" + "Aprendiz de Novos Sons”, recolhendo peças de homenagem expandida a Jorge Peixinho + peças de pendor educativo numa espécie de concerto comentado. O duo anterior de guitarra+eletrónica incluía prefácio, este de violoncelo+piano intercala comentários e o próximo de flauta+piano remeter-se-á ao silêncio. Aqui na sala, porém, conversa-se em ambiente de reencontro e velhas estórias de orquestra; na régie, alguém canta.
Tantalus (de Andreia Pinto Correia) inspira-se num castigo olímpico bem ao jeito da mitologia grega, no qual o garganeiro Tântalo, que havia surripiado o néctar e ambrósia divinas se vê agora numa situação eterna entre a água e os ramos de uma árvore de fruto que, conforme a sede ou o apetite, ora se afastam, ora se erguem. Este desespero será (involuntariamente) recalcado ao longo do concerto, de cada vez que se tenta a aproximação à música contemporânea. Clusters graves no piano e harmónicos agudos no violoncelo, pedaços de matéria sonora desagregada flanam pelo espaço em busca de uma ponte. Não raro os títulos se tornam o conteúdo e a maldição: eis aqui sons de quem o espaço foge e a ponte sobe – piano em blocos ascendentes e violoncelo sem arco meta-musical que o ligue de um elemento sonoro ao outro. Pode bem ser que os nossos ouvidos, tão habituados neste festival a uma cola eletroacústica, se ouçam crus e embaraçados perante sons falhos de vestimentas eletrónicas (o próximo concerto contraditará todavia essa assunção).
A referência intervalar aos estudos para piano do Peixinho continua no carro do Carlos Marecos, que traz à memória os caminhos cruzados pelo Peixinho e os seus alunos em ruas dos anos 90 – Rua do Ataíde, Rua dos Caetanos, Escola Superior de Música, carro incrustado na parede, Eurico Carrapatoso e o filho a perguntar de quem é o carro – numa bela estória-recordação que o próprio Marecos contou ao vivo para O Carro de Jorge Peixinho, elucubrando também, por coincidência, acerca dos elementos que se tornam decorativos por causa de um título. Em resposta a Jorge Peixinho, o piano surge preparado e vibrante, o som + assumido, + energia direcional e concentrada, + ritmo e velocidade, + energia concentrada em diferentes estados de espírito, subtileza no glissando, ataques esparsos… Mas o carro esbarrou na falta de desenvoltura dos intérpretes, preocupados com a ausência de air-bag.
Prossegue o concerto comentado, alternando homenagem, memória e aprendizagem com a rubrica “aprendiz de novos sons”, passando por Mariana Vieira (Dual) e Eduardo Luís Patriarca (...suddenly, this silence...) onde a voz constrangida e ininteligível concorre em gestos uníssonos que anunciam “the secret of this existence”: “silence”. O intuito pedagógico é louvável e Jorge Peixinho certamente teria ficado contente com o projeto, se atentarmos numa conferência intitulada “Música viva para uma sociedade viva” (1992) **, na qual o compositor esbaforido advoga que “Igualmente necessária e urgente será a implementação de medidas e acções coordenadas, tais como: (I) Inserção sistemática da música contemporânea nos concertos mais eclécticos, privilegiando sempre que possível as obras de compositores portugueses; (II) Realização periódica de festivais de música contemporânea em várias zonas do país, de dimensão e duração variáveis, e com temáticas diferenciadas e inovadoras; (III) Profissionalização plena dos compositores, através do estabelecimento sistemático de encomendas, remunerações salariais, prémios de execução, atribuição de magistérios e residências, etc.”
Estes mandamentos coincidem notoriamente com o do Festival Música Viva, e o deste recital também. No entanto, “música contemporânea” ainda significa para muitos um saco de efeitos assanhados que não se quer tocar. Admitamos, por vezes é isso mesmo (reviremos os olhos). Ser-lhe-á inerente a falta de amadurecimento – só mais tarde saberemos se o fruto era realmente azedo, mas primeiro há que descascá-lo, ou custará engolir a casca grossa. Pior ainda se estivermos desconfiados e tensos. Quanto à parafernália esquisita (os efeitos), constitui uma ferramenta, não (necessariamente) o objetivo. Tende-se a confundir música “contemporânea” com uma sucessão de efeitos gratuitos sem consequência narrativa que, após deslumbramento inicial, se tornam muito aborrecidos. Por outro lado, há ambientes que surgem de uma insistência sonora ou mera repetição de ruído até à manifestação de outros sentidos não percetíveis num só ataque. E, convenhamos, há efeitos giros que emergem do anseio da descoberta, de um à-vontade na abordagem ao som, bem como de um certo humor e distância.
Algo que não falta ao professor Christopher Bochmann, que assinalou espirituosamente as dificuldades do compositor Bochmann ao evitar aquele fhhhuiiit zhack pum RRRR pás!!?% da música contemporânea e a concentrar-se na “capacidade de tocar... ritmos irregulares”. Efetivamente, as tarefas foram claras. Agora, o que dirá o analítico Bochmann do compositor homónimo?
Termina João Pedro Oliveira em memória e ausência (Absence... mémoire) num cumprimento “eletrificado” ao estudo n.º 1 para piano de Jorge Peixinho: sons-eco a chocalhar pelos canais, saltando em ricochete, até o som do violoncelo se liberta e cresce, eis a eletrónica como terceiro instrumento, o remanescente de um som, nem oposição nem simbiose, mas outra coisa (uma presença que, no caso, não (retro-)alimenta). Aquilo que antes soava pobre, nu e cru, sofre um empurrão da ventania eletroacústica, embora caminhe ignoto, envolvido por um vento que segue o seu próprio caminho.
Passado o vento, reduzida a brisa, é quase desconcertante perceber a sua falta e o potencial tantalizador quando nada empurra ou cobre as fraquezas dos aprendizes. Quem são eles afinal? Somos nós. Assim sendo, será que um conto sobre literatura contemporânea atiçará um jovem leitor a ler literatura contemporânea (seja isso o que for…)? Ou um conto infantil de linguagem abebezada? babá gogó chicha tá tá popó… Será que (n)os convence?
DUO SIGMA – “Mémoire... Miroir e o Aprendiz de Novos Sons”
Os sapatinhos das feiticeiras de Oz
“A correr à frente do relâmpago” não faz jus à calma lunar que preencheu o concerto de dia 20. Ao encerrar a programação do 27.º FMV’21 – “a música portuguesa em primeiro plano, de mãos dadas com a tecnologia”, anuncia o diretor do festival azguímico –, este duo de piano e flauta – Elsa Silva e Sílvia Cancela – estreia a descoberto das árvores e das próteses altifalantes, num “programa sem eletricidade, uma janela aberta para a criação do nosso tempo”.
Nos recitais duais anteriores presenciámos um guitarrista cego que atravessou insensível a sombria floresta eletroacústica, um duo de violoncelo e piano que tremeu perante as sombras e agora um duo que as traz consigo – “My shadow walks home with me” – e sai a céu aberto. Julgar-se-ia a floresta profunda mais afeita a encontros extra-terrenos, mas, como ouvi-veremos, por contraste com duos anteriores enleados noutros matagais, esta arena acústica de palco despojado de vegetação eletrificada revelou-se a mais propícia para observar a Lua, no O’culto (em tela projetada) e fora dele (coincidentemente Cheia, por sinal, no espaço sideral noturno). (O que faz com que constelações instrumentais semelhantes brilhem de forma tão diferente? O que muda, se muda tanto? Que elemento está à coca, qual satélite deslocado, exo-programático, que de repente irrompe e nos arrebata de forma inesperada? Será da Lua?)
As intérpretes trouxeram não uma flauta mágica (nenhum rato acorreu), mas dois… pares de sapatos; não propriamente os sapatos prateados da falecida Bruxa Má do Leste que Dorothy descalçou, mas, na atmosfera sóbria de recital de música de câmara, eis uns luminosos sapatos azuis e vermelhos que prometem feitiçaria da boa. Uma lua projeta-se em fundo, enquanto lá fora a Lua verdadeira, na tela do céu noturno, reproduz na realidade a prenhez mensal. “Full moon is rising around”, de facto, no mote da peça de Sara Carvalho (My shadow walks home with me), pequenos quadros intercalados com voz a dar o mote a este hai-ku sonoro que evoca o imaginário francês da eflúvia flauta sonhadora.
O FMV também é isto: “não se esconder sempre atrás da eletrónica”, relembra Miguel Azguime. O que faz uma música ser de hoje? A tal música contemporânea não implica necessariamente uma travessia agreste… E em peças recentes, a maturidade interpretativa dá azo a uma proximidade paradoxal: essa segurança dá ilusão de um gesto habitual que remete simultaneamente para o peito (saber de cor) e para o horizonte ou distanciamento quase histórico.
Ao fundo, a lua metamorfoseia-se num sol vermelho para receber 3 belos quadros sobre o fado, de Rui Penha, uma espécie de fado ao ralenti em três estádios (métrica, melodia e harmonia). Não deixem de ouvir a explicação do próprio compositor no programa Música de Invenção e Pesquisa, Episódio 22 – de 15 Out 2021 – RTP Play.
Run Before Lightning – a peça de Jonathan Harvey que empresta o título a este recital – nasce de uma encomenda para o Concours de flûte Jean-Pierre Rampal 2005 (atribuído a Clément Dufour) e flana pelos tiques técnicos da música contemporânea – mergulhos de alto a baixo na tessitura, frulato, profusão rítmica, multifónicos – que, não demorando muito a instituir, fazem já parte do vocabulário, ecoando muito a referência para flauta e piano de André Jolivet, Chant de Linos, propriamente uma encomenda do Conservatório de Paris para o concurso em 1944 ganho por, adivinhe-se...Jean-Pierre Rampal (eis aqui outra arborescência genealógica).
Elsa Silva e Sílvia Cancela conseguiram esbater o formato flauta-com-acompanhamento-de-piano, ou, se preferirem, reforçá-lo com tal arte que nos abstraímos da forma e escutámos uma mescla sonora de Sílvia Silva e Elsa Cancela, cada uma no seu ramo sonoro, mas numa mesma copa de árvore ao luar.
Em boa verdade, todos os registos e efeitos e melodias, bem combinados, resumem a linguagem das peças para flauta do século XX, sem grandes novidades estilísticas: floreados pastoris, efeitos de glissandos, clusters no piano grave, cordas beliscadas e amortecidas, voz de garganta paralela, percussão de chaves... efeitos ao serviço da melodia, como continua em Doina Rotaru (Crystals) a tal flauta bêbeda que encarna a flauta balcã (duduk/ kaval). A linguagem não é nova em si, apenas concentra efeitos num gozo flautístico (“Só, incessante, um som de flauta chora”, escreve Camilo Pessanha) herdeiro de Marcel Moyse e Jacques Ibert. (Este momento do concerto termina com a cabeça da flauta apenas, efeito mitológico da flauta decepada, completando o arco, por contraste, da série de decapitações iniciada com a cabeça italiana falante no início do texto).
É difícil augurar que novas sementes da linguagem musical atual constituem germes para a linguagem da próxima geração. Estes aqui foram bem semeados e eximiamente colhidos por estas nossas feiticeiras, duas cirurgiãs especialistas habituadas a estas andanças.
Arremate-se com uma coda destacada, não por pertencer ao diretor artístico do festival, mas por tocar na mouche/ bouche. A estreia absoluta de Miguel Azguime de Par ce chemin de rien, em fundo azul, prepara-se na afinação da desafinação; o que parece uma piada à imagem daquele cover do genérico dos Universal Studios por uma flauta de bisel esforçada, abre na verdade a perceção aguda de uma característica base da flauta e um dos seus ângulos cegos: o ângulo de sopro tão variável, aqui conjugado com uma afinação deslocada, uma espécie de scordatura de sopro.
O ataque bruto, na base sólida da caixa do piano, bate o desdobramento dos parciais enquanto a flauta glissa na plena variabilidade angular intrínseca que fisicamente a define, mantendo o desencaixe que nunca encaixa e as notas coincidentes descoincidentes; tudo acelera até ao ostinato minimal rápido e constante de peça-brinquedo, num efeito mecânico-harmónico de cascata. A desafinação insiste em glissandos de aproximação e desvio (Tântalo?), até tinir a corda da afinação e se chegar a um ponto de encontro (podia acabar aqui). Mas a nota desafinada insiste, desembocando num ditado rítmico ao teclado com pinceladas minimais, flauta jogando montanha acima e abaixo, como numa pista convexa de skate. E volta de novo a A2, memória da secção inicial (podia ter ficado em B afinado), numa espécie de forma-sonata à qual não falta a cadência a solo da flauta barroca. Soa familiar esta repetição minimal – música para piano automático e máquinas desconchavadas – que continuaria ad aeternum.
Termina a meio, para assegurar a possiblidade em aberto da performance infinita. É assim a música contemporânea, um estado interrompido porque não sabemos em que ponto vai mudar. E pode ser já daqui a duzentos minutos.
DUO SOND’AR-TE (flauta & piano) – “A correr à frente do relâmpago”
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