O 27.º Festival Música Viva começou com um concerto do Sond'Ar-te Electric Ensemble, um dos grupos mais entusiasmantes na interpretação da música dos nossos tempos, não é exagero dizê-lo. Músicos “de ponta”. Mas foi um Sond'Ar-te alargado a catorze instrumentistas (a que é preciso acrescentar o maestro Petter Sundkvist), para tocar obras de João Madureira, Gérard Grisey, Miguel Azguime e Györgi Ligeti. Este festival, centrado na música actual, lembra-nos que o que é novo tem uma história – inscreve-se, de uma forma ou de outra, numa das muitas linhas da infinita busca de novas formas de expressão e conhecimento através do som.
O concerto evocava os “50 anos de música espectral”, uma efeméride um pouco discutível, porque efectivamente o interesse pelo “interior” do som, pelas suas características e qualidades, tem uma história longa. Para além de outros precursores (em certa medida podemos recuar a Debussy, por exemplo, que abriu caminhos neste sentido) é preciso considerar as rupturas que a música concreta e a música electrónica fizeram nos anos 50 e os caminhos que abriram. Mas é verdade que foi nos anos 70 que o termo “música espectral” começou a ser usado para falar da música de compositores como Tristan Murail, Gérard Grisey, Hugues Dufourt ou Michäel Levinas. Música interessada numa nova forma de pensar a percepção (uma nova forma de organizar dissonâncias, consonâncias e as tensões dinâmicas) e, ao mesmo tempo, fascinada pelo som como fenómeno acústico, investigando-o até ao tutano – as suas frequências, as suas dinâmicas, os seus ataques, os seus padrões, etc, e analisando detalhadamente o “espectro” harmónico. De certa forma, entre a peça de Ligeti de 1970 e as peças mais recentes do programa, um fio passa. Talvez a palavra “espectral”, liberta hoje da sua função de designar uma escola ou um método de composição, possa ajudar a ligá-las. Mas ouçamos mais de perto...
O concerto começou com Ausgraben und Erinnern, peça de João Madureira de 2006 para seis instrumentistas, cujo título faz referência a um texto de Walter Benjamin sobre o papel “arqueológico” de quem busca na memória os “tesouros” mais úteis para pensar o presente. Escreveu Walter Benjamin: “Aquele que procura aproximar-se do seu próprio passado enterrado deve comportar-se como um homem que escava”. E acrescenta que esse sujeito “não deve ter medo de voltar uma e outra vez à mesma matéria”. Podemos escutar a peça de João Madureira à luz desta “escavação” sonora sobre matérias pequenas e repetidas, pérolas resgatadas com pequenos gestos de escavação, por vezes “à mão”, delicadamente para não danificar os tesouros encontrados. Peça dificílima para os intérpretes, mas que o Sond'Ar-te tocou primorosamente. A dificuldade maior, (para além dos quartos de tom e das transições súbitas) parece ser a de como coordenar as micro inflexões e os pequenos gestos (por vezes muito rápidos) da obra, sem perder o sentido da “escavação” sonora global. E como “descoordenar” os gestos quando a peça o exige. A peça de João Madureira tem algumas indicações dinâmicas: entre elas, “determinado e afirmativo” ou “decidido”. Apenas aí sentimos falta de um maior contraste em relação ao que antes se passou. Se aparece escrito “resolute” na partitura, é porque antes não será tão decidido, mas quase interrogativo, na proposta delicadamente radical de João Madureira.
Seguiu-se uma peça “histórica” de Gérard Grisey, Talea de 1986, para 5 instrumentos (aí a formação do Sond'Ar-te reduziu-se à base), uma peça verdadeiramente espectacular, no sentido em que convoca o ouvinte para uma escuta atenta desde o início, exige dos intérpretes uma série de rapidíssimas intervenções e não pára de propor empolgantes surpresas. Não deixa de ser curioso que uma peça de 1986 possa ser tão pertinente hoje em dia, embora se sinta que os seus caprichos têm data. Passaram só 35 anos. Será muito tempo ou pouco ainda? A peça de Grisey, no seu fascínio pela micro-tonalidade, é um bom exemplo do que o espectralismo trouxe, na sua tentativa de restabelecer uma dialética entre dissonância e consonância em novos termos. Claro que isso não depende só da música, mas também dos nossos ouvidos.
A obra Águas Marinhas (2004-2005), de Miguel Azguime, dialoga com esse passado recente, e também por isso fazia todo o sentido neste programa. Mas fá-lo numa linguagem que é já outra: há uma investigação consequente sobre a micro-tonalidade, mas ela é muito mais do que um estudo – é uma peça atrevida, entre pequeníssimos gestos e grandes oceanos de som. Parece atravessar esta peça uma vontade de “dizer”, uma busca nos limites da linguagem musical de uma nova retórica, de novas formas de cativar os ouvintes, nos antípodas do conformismo. Ao mesmo tempo, resgatando a possibilidade de uma expressão maior (interior, diríamos), nos interstícios do som, mas também nas grandes vagas em que estas Águas Marinhas nos envolvem.
Finalmente, veio a peça de György Ligeti. Sente-se o tempo a passar por ela, mas a verdade é que ela tinha um lugar perfeito neste programa bem concebido pelo festival Música Viva. O Concerto de câmara para 13 instrumentistas foi muito bem dirigida por Petter Sundkvist e excelentemente interpretada pelos músicos. Este Concerto de câmara é uma peça de pequenas transformações a partir dum mesmo material, de amálgamas tímbricas que desembocam em provocantes uníssonos ou em movimentos orgânicos com cromatismos, peça onde as trocas de tons e sons vão alargando as texturas sonoras...
Ligeti insistia na importância da sensibilidade auditiva humana. E este Concerto de câmara para 13 instrumentistas, brilhantemente tocado pelo Sond'Ar-te na sala do O'culto da Ajuda, em Belém, confirma isso mesmo: nesta obra propõem-se percepções auditivas (que em 1969/70 eram incomuns) através de um jogo de deslocamentos rítmicos (no terceiro andamento, Movimento preciso e meccanico, a irregularidade é mais evidente), sobreposições, permutações de sons e extensões de clusters em todas as direcções, com uma inventividade e radicalidade (no sentido em que leva o mais longe possível um gesto artístico e uma proposta estética) que são, ainda hoje, exemplares.
Um entusiasmante concerto de abertura do Festival Música Viva, com sala bem cheia, onde apesar da diversidade estética se podia sentir e ouvir um fio que perpassa por todas as obras. Das micro-escavações da memória de Madureira às estruturas rítmicas de Grisey, passando pelos mares de som de Azguime ou as texturas e as desarticulações de Ligeti, todos eles desafiadores da nossa escuta, e com afinidades estéticas claras, apesar de todas as distâncias. Será uma simples afinidade? Será uma genealogia? Que fio é aquele, como o designar hoje? Chamemos-lhe talvez: o fio do som interior.
Gravações do concerto disponível na secção Media – Vídeos: >> ligação
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