2021.05.22 · Convento dos Capuchos, Caparica – Almada
Simão Costa · “BEAT WITH OUT BYTE – (un)learning Machine”
o piano ímanente
Tiago Schwäbl
Simão Costa · Foto: © Mário Rainha Campos
Simão Costa · Foto: © Mário Rainha Campos

Simão Costa toca-nos “BEAT WITH OUT BYTE – (un)learning Machine”, segundo concerto de lançamento do disco – iniciado na noite anterior no Salão Brazil, em Coimbra –, pela editora Cipsela Records, no Convento dos Capuchos, Caparica, a 22 de Maio de 2021.

O pianista que se aproxima inaugura a atração à grande caixa negra, e o som emana, ou melhor, imana sinusoidal, a um toque de dedo, digital, sem aflorar qualquer teclado. A abordagem insinua um poderoso theremin: sons e gestos em campos eletromagnéticos alterados “fermentam”, segundo a descrição, nesse corpo negro ressoante, ora manobrado ora pedalado, confluindo por indução numa interminável onda nua e oscilante que irá porventura coincidir com uma nota, uma tecla, um som de piano.
(Fim do primeiro módulo; na plateia, alguém murmura um “bravo” enternecido.)
Este duplo ato de indução e percussão sintetiza todo o arco do concerto: uma expansão eletromagnética chegará ao martelo, e o martelo atacará a corda livre.

mecânica
O instrumento é um piano aberto, grande parte do que ouvimos acontece nas suas entranhas. No entanto, presenciamos o concerto como um disco, sem grande acesso aos bastidores. Mas antecipemos o vislumbre cirúrgico final, quando o piano fica em palco, depois do concerto, qual baleia aberta, e testemunhemos o fascínio da estrutura metálica, a madeira curvada que lhe serve de ilharga, a tensão brutal das cordas, o mecanismo refinado dos martelos. Dir-se-ia inamovível. Um colosso sensível. Não obstante, levado à tábua: cabos brancos arrepiados como intestinos presos com mola e desviados na sala de operações ascendem sobre o piano, onde se ligam ventoinhas, metrónomos de finas talas e pequenos discos metálicos. É, afinal, um piano preparado: mexer, interferir, limitar para expandir, desviar, completar, ao encontro da essência idiofónica do cordofone. ‘Piano preparado’ tem aqui um foco específico: Simão Costa explicará, entusiasmado, em conversa de rodapé, os conceitos que pousam sobre as suas cordas: íman, altifalante, eletromagnetismo.

altifalantes
Simão Costa tem concentrado a sua pesquisa no altifalante em si mesmo, abandonando “a mediação passiva de um arquétipo de frequências (…); um compositor tem essa ideia do espetro da audição e escreve para isso; quando a música vai para um altifalante, é suposto representar esse arquétipo com o maior rigor possível. (…) E o altifalante é considerado bom ou mau consoante a sua capacidade de representar esse espetro”.
Imaginemos agora o altifalante – esse objeto intermediário, um filtro – como que desacoplado e equidistantemente isolado da fonte sonora que deveria amplificar, bem como da função de projeção que lhe está associada, subitamente trabalhado como um instrumento, foco e origem da criação sonora. “O altifalante funciona desta forma: tem um íman estático e rolos de cobre pelos quais é enviada eletricidade, fazendo variar o campo [magnético], e o cone anda para cima e para baixo de formas tão incríveis que se transforma em ondas sonoras, também elas incríveis, às quais chamamos música.” E assim se indicia a atração: sobre as cordas perfilam-se torres de ímanes, pequenos discos prateados que exercem a sua força sobre o metal das cordas e não só desviam a sua rota sinusoidal, como nelas imprimem a sua própria massa, somando-a ao espetro sonoro.
É o tr(i)unfo da acústica – without byte –, as ondas sonoras relevam do íman e da sua influência na corda, do impulso sinusoidal que o atravessa. Excetuando um controlador Max, não existe processamento digital (byte), tudo é pulso (beat). Curiosamente, o resultado auditivo da dimensão espetral remete de imediato para as construções eletroacústicas e, não por acaso, para as orquestras de altifalantes.
Na sinopse do projeto pode ler-se como se foram “conciliando novas e velhas formas de excitar cordas de piano. Celebra-se, por um lado, o piano como instrumento de percussão, por outro, abre-se o seu potencial de ressonância por indução, ao colocar as cordas a vibrar sem lhes bater.”
Praticamente tudo acontece dentro da caixa ressoadora (o altifalante), o piano preparado inicia quase sem ser tocado, por mistérios sonoros nos chegam – ímanentes – da vibração interior. Tecnicamente, o concerto começa por indução – “funciona exatamente como um altifalante: há um íman estático e um indutor que manda determinada frequência para lá; é um altifalante surdo, sem membrana, que interage com o íman que está em cima da corda”.

pianoforte
Mas “o mais importante” é que o piano, relembra Simão Costa, é o altifalante por excelência numa altura em que não havia eletricidade. Aplicando ao pianoforte a mesma premissa do concerto, qual a matéria sonora intrínseca a esse objeto? O que escutar desse proto-altifalante? O que tine quando não é martelado? Que parte altifala?
Esta noite o piano dos Capuchos acolhe no seu bojo uma prole de gadgets, pequenos motores que reagem similarmente, tal qual altifalantes, contendo pequenos ímanes interiores sensíveis ao “círculo desdobrado no tempo” que desenha a sinusoide, a qual, no seu pico de energia, tem eletricidade suficiente para pôr um motor mexer – o ganho gere a intensidade e a frequência a sua rapidez. Por exemplo: num dado momento, sobressaem varetas que oscilam e batem no piano, como um metrónomo, acionadas exclusivamente através de som: uma onda sinusoidal de 2 hertz fá-la-á mexer-se duas vezes por segundo. No fundo, é a aplicação prática da teoria acústica, o altifalante enquanto impulso sonoro, um transdutor de sinal elétrico em energia sonora. Este princípio de poder mecânico e energético do som é fantástico, “muito bom mesmo.”

O piano-altifalante opera assim enquanto estrutura de acolhimento de altifalantes eletromagnéticos desmembrados, estes desmontados dentro do outro, essoutro assegurando o suporte mecânico – esqueleto acústico – para a demonstração magnética daquele. Assistimos ao eclipse dos altifalantes: um serve de interface para o outro deixar de o ser, misturando-se as características na sua justaposição física. Este conjunto (piano-altifalante + pedaços de altifalantes eletromagnéticos), por sua vez, será gravado e tocado de novo aquando da sua reprodução em disco – em casa, por colunas caseiras – através de um terceiro altifalante. Uma matriosca de altifalantes.

“a peça são três notas”
Os estímulos-teclas são (ainda) escassos nos primeiros dois módulos do concerto (BEAT WITH); qualquer intervenção pianística será efémera, em registo de apontamento, numa relação fortuita com os martelos. Aguardamos o que não acontece: ataque e desmaio, o golpe sonoro seguido do equilíbrio instável da sua transitoriedade. Consideremos agora esse ato invertido: uma efemeridade que inicia ténue e cresce até à continuidade, e cresce ainda mais até ao ataque frenético do jogo de martelos. Esta inversão é a emulação do gesto amplificador do altifalante, até ao máximo crescendo, da indução à ação do som mecânico. Quando finalmente chegarmos ao teclado pleno (OUT BYTE), o ataque preciso soará em falso (não tonal), subvertido (preparado) o sistema de Cristofori pelas cordas imanadas.
Só no encore soará o princípio mecânico “original”, já sem o crivo do piano preparado. Mas a irrevogável experiência indutiva da primeira parte quase impede a escuta inocente... desaprendemos a máquina, ansiamos pela imersão eletromagnética.
O piano solo, quando volta (?) à melodia e à harmonia, após toda a passagem induzida, soará ora dececionante, em noções plásticas antigas, ora reconfortante, pelo contraste à parafernália preparada. Seja como for, evidencia-se uma relação inversamente proporcional entre a imanência imanada e a extrapolação batida. A linguagem escassa ou minimal do gesto mecânico contrapõe-se à densidade espetral interior: a vontade do metal comanda, uma força dentro de outra força. (Cantará o piano elétrico?) A sinusoide induzida canta aqui o corpo do piano ímanente.
Num só fôlego, num só take.

(Un)learning machine
O piano é um tear sonoro ao qual é aplicado eletricidade subtil, em impulsos que lhe permitem aprender e mudar sons que, em última análise, já são seus. O subtítulo do projeto declara perturbações no comportamento da máquina, reações contraditórias a sucessivas redes de ferramentas – “a partir de momento de criação de uma lança, estamos mais presos, nalguma medida…”. Desmonta-se a ideia de altifalante acústico ao aninhar precisamente um altifalante eletromagnético (ou pedaços dele) no seu âmago; alternam-se exercícios de desaprendizagem por via da montagem, e de desmontagem via aprendizagem, desbloqueando a caixa através do piano preparado; encaixa-se o objeto de permeio sem permeio, a amplificação desamplificada. “Aquilo que mais me diverte”, declara Simão Costa, “é reduzir os recursos ao mínimo, implodir um preconceito qualquer e fazer nascer qualquer coisa a partir daí”.

arquétipo
Quando se instalara a ideia de autonomia da máquina a soar para sempre sob as leis da atração e vibração, eis que um corpo de piano ressalta. Esse “arquétipo” cresce performaticamente (indução – ação – percussão) nos dois últimos módulos: o batuque salta de dentro da caixa e a triagem do pedal, filtros e limites provocados pela armadilhagem do piano determinam as sonoridades de ragas metálicos e pauzinhos a dançar.
Durante o concerto quase faltou a partilha desse segredo, a encenação visual do lugar onde tudo se passou, gostaríamos também de ver tudo a mexer, de lançar um olhar sobre o som que mexe e desregula. Coube ao construtor o prazer da performance, ao ouvinte a espreitadela final para dentro do piano ou, privados do concerto, para dentro da capa do álbum desenhado por Marta Cerqueira, um quadrado que se quebra na diagonal como os “quantos-queres” de papel.
Cá fora, os dedos continuam.
Simão Costa entusiasma-se e mergulha de cabeça no piano preparado, na percussão-ação, é a vitória do beat na faixa do byte, do impulso corporal e sanguíneo. (Algo curioso de constatar: quando toda a máquina parece tocar e reagir sozinha aos impulsos mínimos do pianista [pianista? mecânico? disc jockey?], ele insiste na loucura frenética e minimal da dança dos dedos. Quando bastaria um loop, um botão, um interruptor…) Nesta secção o piano preparado é tudo (do “batuque africano [ao] gamelão balinês, (…) mas aludindo mais aos universos do rock e do jazz”, como observa Rui Eduardo Paes), incluindo a maravilha de soar o que não é. A junção das frequências permite a construção de uma orquestra inteira – laivos pianísticos imperiais – e a máquina háptica expande-se intermitente na tonalidade dançável. Simão Costa, como se não resistisse à tentação, perde a cabeça e o corpo no feitiço do ritmo, abanando todo o piano e todo o corpo até ao grand finale, gesto de concerto para grand piano, que o foi.

Palmas.

“É bom tocar outra vez”, diz a voz embargada.

Falham as palavras… e chegamos ao encore.

O piano é cuidadosamente despido – todo o respeito pelo velho Steinway –, voltando à sua complexidade cristofórica, ao piano sem acessórios (ou aos acessórios dele mesmo), o regresso ao tom. Reconciliação? Ou guilty pleasure das harmonias que flutuam em banda sonora? (Um mimo para o final de tarde na Caparica. E tudo o resto foi um sonho de Dali…)

beat with out byte
O título do álbum decompõe-se em quatro faixas gravadas de uma só leva, reproduzidas agora em concerto. Beat, with, out e byte constituem módulos aparentemente intercambiáveis, a avaliar pela relação entre o conteúdo e o seu título: nas primeiras duas (beat with) adensa-se a eletroacústica estática e espetral, e nos dois últimos (out byte) impera a percussividade exterior. Por outro lado, podemos igualmente inferir que, without byte, tudo é beat.
Simão Costa coloca em cena a relação de amor-ódio entre o binómio humano-máquina. Beat remete para o pulso, os ciclos repetidos, a batida constante dentro dos seres vivos, uma noção biológica que se opõe a Byte, informação que vem de fora. Se beat representa a organicidade, o impulso natural, o ritmo que nos guia e em nós circula, encontramos justificação para a imanência. Todavia, a sucessão de BEAT WITH OUT BYTE não é isenta de ambiguidade. Se os módulos forem transversais e em constante contacto e permuta, tensiona-se a reflexão perante o ensaio de BEAT WITH BYTE, BEAT OUT BYTE, OUT BEAT, OUT BYTE, WITH BEAT, WITH BYTE, OUT WITH BEAT. Se piano é máquina, portanto byte, o pianista permanece a fonte da energia beat. Mas se o piano-máquina albergar em si um byte intrínseco e vibratório – uma exterioridade assimilada que se funde em beat –, os dedos do pianista tornam-se bytes que, tecla branca/ tecla negra ludibriam a atmosfera intramuros das ilhargas de um piano.
Vence o beat no final, a pulsão irremediável do próprio som criador de energia; se considerarmos without uma palavra só, exclui-se o byte – exclusão que não deixa de o incluir no título do álbum.

Afinal, quem toma o pulso a quem?

Sala cheia na margem sul. Assim se cristalizou parte da pesquisa de Simão Costa.
Disco disponível em: >> cipsela.bandcamp.com. Outros projetos de Simão Costa aqui: >> simaocosta.com.

O Autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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