Capa do CD · “NowState” (ed. Kairos)
Foi lançado no ano passado o disco NowState, de Gonçalo Gato. Este CD, editado pela Kairos, reúne obras suas escritas entre 2008 e 2018. Neste caso parece fazer sentido começarmos pelo fim. Porque a última peça do disco, com o título Derivação, a mais antiga composição das presentes neste conjunto de registos, é indicativa de toda uma atitude perante o acto de compor. Não é por acaso que o compositor decidiu incluí-la no disco e lhe atribui um valor de “manifesto”. Um “manifesto de liberdade”, como escreve Gonçalo Gato no livrete que acompanha o disco. “Liberdade de não ter secções pré-definidas, liberdade de não usar esquemas (ou sistemas) composicionais rígidos, liberdade de usar a intuição.” Não se trata de uma “estética” ou um “estilo” a seguir – e as suas obras posteriores afastam-se desta Derivação, em muitos aspectos -, mas simplesmente de uma atitude perante a composição. Numa transparente interpretação do pianista Alexander Soares, Derivação, embora venha no final do disco, dá o mote para o que vem antes.
E o que vem antes é um conjunto bem desafiante de obras, onde aquela liberdade parece trazer diferentes questões e problemas ao compositor. E ao ouvinte. Num interessante texto de abertura, Gonçalo Gato reflecte sobre algumas questões que se colocam a um compositor. Entre elas, duas questões fundamentais: a relação do compositor com as potencialidades do digital e do uso de algoritmos no trabalho de composição, um interesse marcante no seu trabalho; e, por outro lado, os infinitos e complexos problemas da escuta humana e como eles podem ser “integrados” no trabalho do compositor. Mas o mais interessante não está neste texto incluído no booklet – está na sua música, assumida simultaneamente como busca de uma linguagem (ou várias!), e uma procura de criar constantes desafios à escuta.
A primeira peça do disco, A Walk in the Countryside, de 2016, deambula pelo meio da natureza, qual Henry David Thoreau (o escritor norte-americano do século XIX conhecido pelo seu amor dos passeios e da natureza). E contudo, embora a viagem não tenha destino pré-definido, ela enfrenta problemas discursivos. O que vem antes? O que acontece depois? Jogando com a memória do ouvinte, a peça deixa que nos deleitemos com os sopros da flauta, mas segue o seu caminho, como se a paisagem se fizesse música. Neste sentido, apesar das distâncias, podemos lembrar-nos de gestos da música de Messiaen (pensemos por exemplo em Le Merle Noir, para flauta e piano).
Bem diferente, e prova da variedade interna da pesquisa estética de Gonçalo Gato, é a obra Elementos, em que a exploração formal se realiza à volta de quatro “elementos”, Melodia, Ostinato, Pulsação e Sonoridade (que são também os nomes das partes da obra). Neste caso, os três instrumentos – violoncelo, violino e piano, tocados por membros do ensemble recherche – vão propondo quase uma espécie de “estudos para trio”, jogando com possibilidades diferentes da sua articulação em torno de cada um dos “elementos” propostos. Em Ostinato, salta ao ouvido o interesse pela repetição, com jogos rítmicos verdadeiramente empolgantes, que prosseguem na complexa simplicidade de Pulsação. Uma complexidade atingida por sobreposição de gestos simples e repetitivos, perturbando o ouvinte que esperasse apenas regularidade. A peça desemboca numa pesquisa sonora em torno de um conceito mais lato: Sonoridade, em que gestos mais lentos se deixam esticar, como se uns instrumentos puxassem, literalmente, os outros, conjugando-se em harmonias tensas.
NowState é um CD com um conjunto de excelentes intérpretes e agrupamentos, que dão bem conta da dialéctica entre rigor e liberdade que a composição de Gonçalo Gato parece gostar de desenvolver. É o caso por exemplo da bela interpretação de Equilíbrio (para quinteto e electrónica) feita pelo Sond'Ar-te Electric Ensemble, aqui dirigido por Pedro Carneiro. Bem diferente das peças anteriores, e marcada por uma electrónica que tem um efeito “provocador” dos instrumentos, Equilíbrio é uma peça onde o compositor tenta, através duma certa simplicidade de processos, criar uma forma que se vai equilibrando e desequilibrando, como se fossemos colocando pesos diferentes nos pratos de uma balança, e encontrando, a par e passo, “novas consonâncias”, entre movimentos rápidos e repousos.
Segue-se Dégradé, aqui interpretada pelo ensemble CHROMA. Trata-se de uma peça escrita em 2012, quando Gonçalo Gato realizava os seus estudos na Guildhall School of Music and Drama. O Dégradé do título, termo que descreve uma transição gradual de uma cor para a outra, é aqui metáfora de um trabalho de transformação: se no início são preponderantes as figuras musicais, a peça evolui para uma centralidade do timbre e do som. No início são melodias que ouvimos, mas gradualmente é a forma sonora de conjunto que mais importa e que se revela. Também numa escala mais pequena acontecem o que se poderiam chamar “dégradés dinâmicos”, bastante evidentes.
Em #Where we're going (o hashtag no título não é casual), o compositor propõe-se reflectir sobre as novas formas de existência e “socialização digital”, numa peça que permite a Gonçalo Gato revelar capacidades “dramáticas” numa sugestiva escrita orquestral, que a excelente interpretação do Remix Ensemble (com direcção de Peter Rundel) torna bem clara e colorida. “Certamente, muitos aspectos da nossa vida não são classificáveis”, escreve o compositor num texto incluído no livrinho que acompanha o CD. Uma peça que deixa entrever outros caminhos bem interessantes de Gonçalo Gato na escrita para orquestra.
NowState é um CD que revela alguma da mais significativa produção de Gonçalo Gato nos últimos 12 anos (e sobretudo entre 2016 e 2018). Um CD que nos diz também, de certa forma: “é este o estádio da minha arte neste momento”. Mas o título do CD vem da sua obra NowState, para piano, aqui tocada por Alexander Soares. Uma peça com partes bem distintas, que pode deixar dúvidas a quem procura um compositor “de uma estética só”. Na verdade NowState é um bom exemplo do “ecletismo interno” do compositor. Dizemos “ecletismo interno”, porque parece que as suas obras se deixam permear por métodos de composição diferentes (no seu próprio interior e não apenas umas em comparação com outras), onde o uso de algoritmos e de computadores se torna uma ferramenta para uma busca sonora refrescante, e às vezes improvável, como o quase minimalismo da terceira parte de NowState, chamada Digital, que quebra com o lirismo interrogativo da parte anterior, As we turn into machines (ou seja, “enquanto nos tornamos máquinas”).
A música de Gonçalo Gato reflecte sobre a sociedade em que se encontra (gesto mais do que saudável – necessário!) e, ao mesmo tempo, sobre ela própria. Mas sempre com um ouvido humano “lá fora”, que nos toma como ouvintes inteligentes e capazes de procurar em nós o que é improgramável, o que torna a escuta da sua música um exercício desafiante. E não se confunda aquilo que designámos como “ecletismo” com uma ausência de voz ou linguagem própria. Pelo contrário, a variedade interna da sua música, combinando clareza e liberdade, parece parte dessa sua voz própria, desafiando-se a si mesmo e colocando em questão a sua criação. Em suma, um disco bem estimulante de um compositor em busca de novos caminhos e “equilíbrios”, a cujos passos presentes vale a pena prestar atenção.
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