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Monólogo interior de Joana Sá
JAKUB SZCZYPA
2013.11.25

No panorama musical português contemporâneo a obra de Joana Sá, pianista, improvisadora e compositora, constitui um dos exemplos mais originais de junção de várias estéticas, sendo o seu percurso um dos mais singularmente coerentes. O seu último projecto,“Elogio da Desordem”, um monólogo construído a partir de vários textos de Gonçalo M. Tavares, para piano semi-preparado, instalação de campainhas e sirenes, voz, toy piano, caixas de ruído, mini amplificação, tubos flexíveis e harmónio, foi já apresentado várias vezes em Lisboa, no Centro Cultural de Belém durante o Festival Música Viva 2011 (estreia absoluta) e no passado dia 4 de Outubro no Teatro Maria Matos – uma versão estendida com projeções vídeo da autoria de Daniel Costa Neves e Pedro Diniz Reis. Recentemente esta peça foi também publicada em CD numa edição “artesanal” da Shhpuma Records / Trem Azul.

Ultimamente Joana Sá tem-se dado a conhecer aos públicos portugueses e internacionais através de projectos a solo, como “through this looking glass” inspirado no imaginário de Lewis Carroll, ou em duo com Luís José Martins (um dos seus parceiros no PowerTrio) no projecto “Almost a Song”, também editado pela Shhpuma Records, em que a atitude musical vanguardista dos intérpretes se junta à intenção de “agradar ao ouvido”. Talvez seja esta afirmação a chave para a compreensão do sucesso artístico e da estética de Joana Sá. Muitas das influências que lhe podemos atribuir, digamos do experimentalismo de John Cage até à estética do chamado “pop alternativo” de Björk, quando filtradas pelo seu temperamento criativo, ganham uma voz inconfundível em que a abstracção da música vanguardista atinge uma dimensão muito pessoal e “humana”.

“Elogio da Desordem” é uma obra de cerca de 45 minutos que se desenvolve em 7 partes: “Abertura”; “Hierarquia da loucura”; “Fraqueza dos sólidos”; “Tudo o que é claro tem uma parte escura (canção de embalar)”; “Elogio da desordem”; “Realidade, imaginação – (método para não ficar louco)”; e “A queda elegante”. Os excertos de textos de Gonçalo M. Tavares, interpretados por Rosinda Costa, provêm de várias obras deste autor escritas entre 2009 e 2013 (“animalescos”, “O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas” e “Uma viagem à Índia”). A sua organização numa espécie de narrativa define a rigidez formal da música e constitui o ponto de partida para este monólogo sonoro, cuja força se contém na ambiguidade e na incapacidade de dar respostas óbvias e vulgares.

Certamente, o papel central neste triálogo, texto – música – vídeo, pertence à pianista que sozinha no palco, contudo, rodeada por diversos emissores de som construídos por Luís José Martins (campainhas e sirenes) e André Castro (caixas de ruído), desenrola perante o público o seu monólogo, cujos gestos sonoros interpretam, deformam, filtram ou enfatizam o que nos diz Gonçalo M. Tavares: “Está um louco ao piano e toca como um pianista amestrado, dão-lhe medicamentos de tempos a tempos, pois o bicho pianista é muito violento...”. O imaginário sonoro de Joana Sá é composto por contrastes – por um lado encontramos aqui momentos concentrados, contidos, efémeros, quase “líquidos”, como se fossem reminiscências do ciclo das “Sonatas e interlúdios” para piano preparado de John Cage ou da sua ingénua “Suite for Toy Piano”. Por outro lado há instantes, como a 5ª parte (aliás, a titular, “Elogio da desordem”), em que a energia se liberta através da repetição obsessiva de ritmos, gestos abruptos, clusters, ruídos, sons de campainhas e sirenes, acumulando-se num género de dança desequilibrada, numa apoteose da desordem e loucura.
O que é particularmente relevante na linguagem de Joana Sá é a junção de várias componentes que contribuem para a criação de um universo sonoro coerente e penetrante – do piano semi-preparado, em que a pianista adapta a técnica de colocar imãs nas cordas do instrumento, introduzida pela primeira vez pela compositora e intérprete brasileira, Michelle Agnès; do carácter “defeituoso” e noise da electrónica realizada por Hélder Nelson; e das já mencionadas instalações de campainhas, sirenes e caixas de ruído – uma espécie de “música primitiva”. Todos estes ingredientes tornam o “Elogio da Desordem” excepcionalmente rico ao nível sonoro, e fazem com que é possível rever, reler e reouvi-lo de vários pontos de vista, especialmente quando temos em consideração os textos e a componente visual. No espectáculo, esta última, conjuga particularmente bem com a camada musical pelo seu carácter abstracto e monocromático, e pelas geometrias que parecem ser rastos de uma realidade sombria da época pós-vídeo.

O novo projecto de Joana Sá é uma espécie de manual artístico, em que a desordem nos é apresentada nas suas várias facetas, seja ela mental, espiritual ou física. O seu sucesso artístico reside certamente na capacidade de transmitir “subcutaneamente” as emoções e ideias no limiar da sua definição, de se mover entre o abstracto e o concreto, através da simultaneidade do texto, da música e do vídeo. Do ponto de vista mais simbólico o “Elógio da Desordem” parece tratar da liberdade artística na sua oposição às restrições sociais, culturais e estéticas, ou simplesmente ao senso comum preponderante que limita a criatividade. Talvez os trechos da música mais contidos e efémeros, em oposição à já referida dança violenta e apoteótica da loucura, constituam uma (não)expressão das ideias sombrias e emoções intensas que, numa reacção de introversão, nunca chegam a concretizar o seu esplendor na luz do dia. “Nele, no louco, encontraram a posição certa entre a medicação e o mundo para que cá para fora não saia raiva nem violência nem desordem nem desacerto, mas simplesmente o dó ré mi, o que é excelente.”

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