No passado dia 16 de Março, realizou-se no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo um concerto monográfico, dedicado a Cândido Lima, e isto à guisa de antevisão (ante-escuta?) de um CD duplo intitulado “Para além das árvores”. Este, inteiramente preenchido com música do compositor, será lançado, em meados de Abril, pela editora Numérica.
Não poderei deixar de referir a excelente iniciativa da autarquia, ao promover tal manifestação, mostrando-se alheia a alguns “mitos urbanos” que por aí reinam, relativamente aos gostos do público e à pertinência artística da música dita de vanguarda. Ao pôr em valor uma figura proeminente da chamada geração de 60 realiza-se, aparte comemorações mediáticas, um acto de divulgação da arte viva e do vero património.
Esteve a interpretação a cargo do Grupo Música Nova, formação de geometria variável, fundada por Cândido Lima em 1975. Participaram no referido concerto os seguintes músicos: Jed Baharal (violoncelo), Olavo Tengner Barros (flauta), Jorge Salgado Correia (flauta, flauta alto), Carlos Ferreira (clarinete), Domingos Freitas (oboé), Suzanna Lidegran (violino, viola), Cândido Lima (piano, direcção e projecção de som), Ângela Lopes (projecção de som), Margarida Magalhães (voz), Florian Petzborn (contrabaixo), Vítor Pinho (piano), Cláudia Pereira Pinto (voz), Hugo Queirós (clarinete, clarinete baixo) e Pedro Couto Soares (flauta de bisel). Esta benvinda pletora de excelentes intérpretes ofereceu-nos um retrato variado e bem organizado no seu desenrolar, de uma obra fundamental da cultura portuguesa. Como a dos outros seus coevos, a produção de Cândido Lima merecia ter presença regular na programação dos concertos e ser estudada atentamente, tanto na vertente prática do ensino da música, como naqueloutra, mais teórica, da análise musicológica. O melhor da música erudita portuguesa encontra-se arredado da vida cultural, não apenas por um preconceito absurdo em relação a formas de artes mais sofisticadas, mas também pela persistência de debates “estéticos” que combinam, em proporções diversas consoante os seus actores, incultura com estratégia de poder. As observações que se seguem apenas têm pretensões a achegas para a compreensão da rica personalidade musical de Lima.
É patente o fascínio do compositor pelo continuum, aproximando-se de uma música plástica, para usar a terminologia de Pierre Schaeffer. Excertos de “Cenas de Villaiana” (2008-2012), para piano e música electroacústica, foram difundidos como música de estar (retomo, com a devida vénia, a livre e brilhante tradução que Pedro Junqueira Maia fez da expressão musique d’ameublement). O lado field recording e algumas sonoridades folclóricas integram-se, com grande naturalidade e sem facilidades, mais ou menos etnomusicológicas, numa harmonia que, mesmo quando densa, é sempre luminosa e eufónica.
Um outro aspecto da estética de Cândido Lima é a dimensão melódica – recriação imaginativa do que poderia (não) ser uma voz arcaica, em que a magnífica integração das minúcias microtonais e das técnicas expandidas dão um novo sentido à polifonia subjacente a qualquer boa melodia. “Canto Antigo” (2002), para clarinete e piano e “Cantorião” (1997), para contrabaixo e piano, são disso lídimos exemplos, em que o teclado não é nem acompanhamento, nem mero fundo sonoro, mas outrossim subtil engaste. Aliás, o idiomatismo ousado da escrita instrumental nunca degenera em mero exibicionismo, como se pôde constatar em “Le Chanteur du Val” (2004) para flauta de bisel.
Obviamente, casos há em que diferentes aspectos (continuidade plástica, fino contraste dos campos harmónicos, generosidade melódica) se conjugam e se intermodulam. Em “Optic Music” (2010), para piano ao vivo e três pianos pré-gravados, as técnicas de “phasing” caras a Steve Reich, obviamente adaptadas a uma linguagem pessoal, espraiam-se sem a obrigação, algo rebarbativa, da evolução progressiva, cara ao compositor americano. “Tissages I” (1992) e “Tissages II” (1993), ambas para conjunto mais vasto, possuem uma fascinante ambiguidade entre trama harmónica e canto individual, ambiguidade essa reforçada pela superior orquestração/espacialização. Mas, sem dúvida, o ponto alto do concerto foi a estreia de “NI(Y)NI(Y)ANNA” (2011-2012), para violino e electrónica, magnífica peça em que as múltiplas tendências da arte do compositor se encontram integradas num discurso em que a invenção tímbrica, melódica, rítmica e harmónica se fundem num todo encantatório e variado medularmente idiomático sem lugares-comuns e sedutor sem trivialidade. Um notável trabalho, servido por uma excelente Suzanna Lidegran.
Como sempre aquando de uma crise, deparamos, também em termos culturais, com um discurso nacionalista redutor, quando não oportunista; a obra de Cândido Lima é uma daquelas que, sem se auto-proclamar num afã ideológico, tem, muito mais profundamente, algo que dignifica o ser-se português – enraizada nas ressonâncias afectivas da tradição erudita e popular, eminentemente pessoal e medularmente aberta ao mundo.
Para concluir, permito-me observar que, homenageando um artista fascinado pelos jogos verbais, entitulei este texto com um anagrama, penso que algo limiano, do título do concerto e do CD.
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