"Muitos se queixam que a música é demasiado ambígua, que aquilo que devem pensar quando a ouvem é obscuro, ao passo que todos podem compreender as palavras. Comigo passa-se exactamente o contrário...."
Felix Mendelssohn
Em digressão a Zurique, o Remix Ensemble estreou, no passado dia 9 de Março, "Deux portraits imaginaires" de Pedro Amaral, encomenda da Casa da Música. Pouco depois, no dia 12, realizou-se a estreia nacional, na sede da instituição.
Como excelente exemplo das linhas tortas com que, amiúde, a criação e a difusão de uma obra são escritas direito, gostaria de referir duas contrariedades, que acabaram por se revelar frutuosas.
Pedro Amaral encontra-se envolvido num projecto de ópera, a partir do extenso fragmento faustiano, e de outros textos, de Fernando Pessoa; este é, aliás, um benvindo prolongamento de uma partitura como "O sonho" (2010), também de inspiração pessoana, e que revelou as suas notáveis qualidades dramáticas. A famigerada contenção económica levou à, esperemos que provisória, suspensão do projecto. O compositor decidiu então utilizar algum do material na obra ora apresentada, em resposta à solicitação do Remix Ensemble.
Apesar da origem do trabalho, não se trata, de modo algum, de uma "suite de ópera" ao modo novecentista , nem de um qualquer prolegómeno, apenas esboçado. É uma bela partitura, de grande sedução sonora, em que os retratos de Fausto e de Maria (a Margarida pessoana) alternam antifonicamente, mas sempre com um interesse renovado. A característica talvez mais saliente são os soli, próximos da declamação de um texto, aqui ausente, e envolvidos em mágicas heterofonias. Estas frases possuem, na sua escrita, um detalhe de fraseado que as tornam extremamente vivas. Um comentário intercalado, sob a forma de cadenza para o piano e o lamento final, constituem outros dois pólos antinómicos, assim como dois momentos fortes da partitura. Diz o compositor que a obra adquire uma dimensão programática, mas na realidade apercebem-se mais os contornos de uma ópera imaginária, para utilizar a expressão de Adorno, a propósito da "Suite Lírica" de Berg.
O programa deveria ter incluído duas obras de Giacinto Scelsi e Hanspeter Kyburz. Infelizmente, o solista convidado, o excelente saxofonista Marcus Weiss, ficou retido num aeroporto alemão, devido a forte intempérie. Perante a drástica redução do programa, a organização decidiu, em boa hora, dar a ouvir duas vezes a obra de Pedro Amaral, tendo as duas execuções sido separadas pelos comentários do compositor, com o dom da palavra e a clareza que são seus apanágios. Aliás, cumpre referir que esta seria uma prática a repetir, sempre que possível. Neste caso, a experiência revelou-se particularmente interessante, já que, devido ao facto de as notas de programa do autor, apenas estarem disponíveis online, e não na folha de sala, penso que uma boa parte do público terá ouvido a obra, uma vez como música "pura", outra, já em plena posse das suas conotações extra-musicais. Embora não tendo, como petição de princípio, nada contra tais conotações, situem-se a que nível se situarem, por vezes partilho da desconfiança daqueles que temem a incapacidade de muitos, mesmo melómanos, para conceber e fruir a autonomia da linguagem musical. Embora estando a par das intenções do autor, tentei mesmo entregar-me a uma espécie de Gedankenexperiment, aplicando diversas modalidade de escuta. "Deux portraits imaginaires", como qualquer obra conseguida, revela organicidade e polissemia; como numa álgebra do infinito, o programático soma-se, acrescentando sem acrescentar. Na segunda audição ganha-se, sem que na primeira se perca.
Em tempos de pós-modernismo vagamente definido e de uma globalização, que não é só geográfica como também histórica, a questão da assimilação da tradição mereceria tratamento profundo, tratamento esse que se deveria basear numa rigorosa análise das obras, mais do que no discurso que se tece à volta delas. O paradoxo da originalidade (citando uma expressão cara a Emmanuel Nunes) possui multímodos cambiantes. A ligação, mais ou menos óbvia, de uma obra com a tradição não implica um juízo de valor; essa ligação possui diversos graus, desde a citação (que pela primeira vez o compositor brilhantemente utiliza) até aspectos mais subterrâneos, que só se discernem com uma longa frequentação do objecto artístico.
Para além da beleza, coerência e sentido dramático da obra agora ouvida, entronca aqui algo de profundamente interessante no percurso de Pedro Amaral. Este é, no sentido mais nobre do termo, um homem de cultura ou, se preferirmos, e recorrendo a uma terminologia algo Ancien Régime, um "honnête homme". A sua cultura não prejudica o sentido dramático, antes o irriga, não cristaliza a escrita em cópias mais ou menos hábeis, antes a vivifica. Sinais como o timbre da tuba wagneriana, a inclusão da allemande de Froberger ou outros mais subliminares, são vivenciados enquanto símbolos abertos e não como aquelas fracas alegorias desgarradas que, em outros artistas, tentam suprir a falta de interesse da matéria musical propriamente dita.
Embora a direcção de Enno Poppe pudesse ter tido maiores contrastes dinâmicos, a interpretação do Remix Ensemble pôs em valor todas as subtilezas da escrita, assim como o requinte dos soli instrumentais.
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