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Um aperitivo de Mahler sem sal
JAKUB SZCZYPA
2012.10.12

O Concerto de Gala do Prémio Jovens Músicos que decorreu no passado dia 29 de Setembro no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, foi uma oportunidade de ouvir a estreia mundial da nova obra para orquestra de Sérgio Azevedo, “Erasing Mahler”, escrita em resposta a uma encomenda de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. O evento, cuja 26ª edição decorreu este ano, inscreveu-se no 50º aniversário da Orquestra Gulbenkian, que sob a direcção de Joana Carneiro apresentou também o Concerto para viola e Orquestra de William Walton, com a participação de Ricardo João Cabral Neves Gaspar, Jovem Músico do Ano, vencedor do Prémio Jovens Músicos na Categoria A (solistas), e também a Sinfonieta – Homenagem a Haydn, de Fernando Lopes-Graça.

Gustav Mahler é um dos compositores do início do século XX que com a sua música, ao lado de Richard Strauss (seu rival e amigo ao mesmo tempo), levou aos limites não apenas o sistema tonal, mas também a máquina orquestral, determinando neste contexto o fim de uma época. É precisamente este ambiente de fin de siècle que inspirou Sérgio Azevedo a compor a nova obra para orquestra, com Gustav Mahler em pano de fundo. Como podemos ler nas notas de programa do compositor: “Mahler representa, talvez mais do que qualquer outro compositor da História da Música, o fim de uma época: a que assistiu aos últimos anos do Império Austro-Húngaro e à passagem para o mundo moderno (...). Mascarada debaixo de uma profusão de belas melodias, de uma orquestração brilhante, de uma massa de som oriundo de orquestras gigantescas, a morte espreita, mas nós ignoramo-la. Como os vienenses de 1914, valsamos despreocupados enquanto, lá fora, o nosso mundo desaba silenciosamente.”

A nova peça de Sérgio Azevedo, que tem a duração de apenas 12 minutos, o que comparando com as estruturas gigantes das sinfonias de Mahler dá a sensação de ser apenas um suspiro, é, à maneira pós-moderna, construída de citações (foram reconhecíveis por exemplo frases da 1.ª Sinfonia de Gustav Mahler, o terceiro andamento que começa com a melodia do “Frère Jacques” no sinuoso modo menor), ou motivos “ao estilo do compositor austríaco” apresentados sob a forma de uma colagem. Apesar da escolha de um título intrigante, e potencialmente interessante, o conteúdo musical de “Erasing Mahler” não apresentou nenhuma ideia musical que provocasse curiosidade ou que criasse algum diálogo com a obra de Mahler; ou será apenas esta peça apenas um incentivo a relembrar a discografia com as sinfonias do compositor austríaco (por exemplo a famosa interpretação de Leonard Bernstein)?

“A sinfonia é o mundo, deve abraçar tudo”, disse Gustav Mahler, e, de facto, todas as suas sinfonias são um conglomerado de harmonias complexas, melodias wagnerianas sem fim, marchas militares, canções populares, hinos religiosos e missas renascentistas, alusões a outros compositores, mas também de conceitos filosóficos que constituem os fios programáticos da música (como por exemplo o programa do carácter evolucional da 3.ª Sinfonia que terá sido inspirado pelos escritos de Schopenhauer e Friedrich Lange, entre outros). A riqueza do universo sinfónico de Mahler não merece a redução que Sérgio Azevedo nos propõe na sua obra, com os motivos mahlerianos entrelaçados ou simplesmente passados para diferentes naipes da orquestra. Usar e aludir à música de outros compositores (do passado e do presente), atravessar os géneros, desconstruir e reconstruir, citar, fazer colagens, todas estas técnicas composicionais, usadas de uma maneira criativa podem dar fruto a obras originais e mesmo brilhantes (o que infelizmente não é o caso nesta tentativa de Sérgio Azevedo, que, recorrendo às metáforas culinárias, parece um aperitivo mal preparado com ingredientes que sobraram do dia anterior). É de enfatizar aqui vários exemplos (originais e brilhantes): a emblemática “Sinfonia” de Luciano Berio, uma jornada aparentemente neurótica pela história da música que pretende reivindicar a sinfonia pós-romântica anexando, precisamente, a música de Gustav Mahler (no terceiro andamento ouve-se no fundo o Scherzo da sua 3.ª Sinfonia, cujo progresso é interrompido por citações de uma centena de compositores, de Bach até Boulez, todas elas encaixadas de modo engenhoso com a partitura de Mahler); a abordagem pós-moderna do compositor polaco Paweł Szymański, cujo melhor exemplo constitui certamente a sua “Quasi una Sinfonietta” em que encontramos todos os nossos gestos favoritos da música clássica interrompidos pelo bater no tom-tom, uma espécie de corte na montagem; os pastiches de Alfred Schnittke; ou finalmente o estilo pós-minimalista de John Adams (e certamente podiam-se aqui multiplicar os nomes e títulos). Perante esta lista de músicas irónicas, estruturas complexas e também camadas de contextos, referências e significados por descobrir pelos ouvintes, “Erasing Mahler” parece um não muito bem sucedido exercício composicional, não apenas por falta de desafios (agradar ao público nem sempre é uma boa estratégia por restringir a criatividade e sufocar o individualismo, a não ser que isso se torne o objetivo principal) e contextualização aprofundada, mas também por “ridiculizar” a obra de um compositor tão emblemático e complexo da história da música como Gustav Mahler, cuja própria música já apresenta a riqueza de referências e contextos culturais. Qual é o propósito de fazer referências às referências ou citações das citações de uma maneira directa e pouco original?

É confrangedor constatar que no âmbito do Prémio Jovens Músicos, realizado pela RTP, este ano em parceria com Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura e a integrar a programação dos 50º aniversário da Orquestra Gulbenkian sejam feitas encomendas a compositores portugueses que não proporcionem nenhuma abordagem inovadora, que não criem nem um diálogo com a contemporaneidade nem com o passado, isto independentemente da linguagem ou estilo escolhido pelo compositor.

As duas peças que se seguiram no programa do Concerto de Gala do Prémio Jovens Músicos, foram o Concerto para viola e Orquestra (1929) de William Walton e Sinfonietta – Homenagem a Haydn de Fernando Lopes-Graça (obra encomendada pelo Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian em 1980), que segundo as divisões estilísticas da história da música do século XX, podem ser etiquetadas como neoclássicas. Na primeira pudemos apreciar as capacidades do solista vencedor do Prémio Jovens Músicos, cuja interpretação apresentou potencial para desenvolvimento de uma carreira frutífera. Na segunda o palco pertenceu plenamente à Orquestra Gulbenkian sob a direcção de Joana Carneiro, mas cuja interpretação da peça de Fernando Lopes-Graça deixou uma sensação de insatisfação. À maneira de Bela Bartók ou Paul Hindemith a música de Fernando Lopes-Graça é cheia de contrastes, dissonâncias, melodias complexas e “simples”, irregularidades rítmicas, que merecem destaque por parte da interpretação. Infelizmente a comunicação entre a maestrina e a orquestra, a meu ver, não funcionou para cumprir de uma maneira satisfatória todas as exigências e nuances da obra de Fernando Lopes-Graça.

Depois do Concerto de Gala do Prémio Jovens Músicos ficamos espectantes, à espera de novas obras integradas nos outros eventos de aniversário da Orquestra Gulbenkian que irão decorrer ao longo da Temporada 2012/2013 da Fundação, temporada essa que, contrariando as palavras de introdução de Rui Lagartinho na edição especial do jornal Público dedicada a esta efeméride, não é O oásis no panorama musical português, mas apenas mais uma das inúmeras propostas (mesmo que estas últimas, muito condicionadas pela crise) que integram a agenda musical nacional 2012/2013.

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