Nesta peça, em particular, o silêncio e o espaço têm, de facto, um papel importante na narrativa musical, que é, de certa forma, “incomunicante” – como o título indica –, baseada na repetição aparente de matérias pontilhistas que ficam, de acordo com os critérios do compositor, a ressoar e a ecoar sempre de modos diferentes. Neste sentido, os dois pianos, por terem timbres iguais, foram particularmente eficazes, visto que, muitas vezes, funcionavam como ecos um do outro – mérito também das pianistas, que souberam interpretar e transmitir estas ideias de forma clara, conseguindo, ao longo da interpretação da peça, uma gama muitíssimo interessante de variedade de dinâmicas desde o fortíssimo até ao pppp.
A segunda peça, dirigida pelo Maestro José Luís Borges Coelho e com a participação do Coral de Letras da Universidade do Porto e de Inês Vicente como recitante, traduziu-se numa expansão/renovação da peça anterior. Em termos formais, a peça foi bastante clara, intercalando intervenções do coro (com pouca participação instrumental) com momentos em que o discurso estava entregue aos pianos – destacando-se, alias, uma secção central de grande duração que antecedeu a secção final. As intervenções do coro, em que, na maioria das vezes, o texto era impercetível, dado o desfasamento entre as vozes (todas solistas), acabavam por funcionar como separadores das intervenções dos pianos.
Tal como referi, neste ambiente em que o silêncio se confunde com o som, a música acaba por tornar-se imprevisível e foi precisamente assim que se preparou a secção final, emocionalmente vibrante, em que a recitante tomou a palavra para declamar um poema e em conjunto com o acompanhamento instrumental se descobriu – mesmo que as palavras não entrem neste domínio - o sentido do que se tinha ouvido anteriormente.
2.
No segundo dia de Música Viva, foram propostos dois programas tão distintos quanto arrojados. O primeiro dos dois foi “Nova Percussão”, encabeçado pelo percussionista Nuno Aroso, solista do Grupo Oficina Musical, que encarou todo o programa com uma atitude e empenho exemplares, denotando sempre grande segurança na interpretação das peças que levou a concerto. De louvar, desde logo, o facto de Nuno Aroso apresentar um concerto exclusivamente português, com peças de Luís Antunes Pena, Álvaro Salazar, Virgílio Melo e Pedro Junqueira Maia, sendo que todas elas fizeram uso de electrónica.
“Três Quadros sobre Pedra” (2008), de Luís Antunes Pena, conjugou de forma muito interessante e equilibrada a elaboração / construção rítmica (quase implícita na percussão) com a diversidade de timbres. Cada um dos três quadros (ou andamentos) apresentou um discurso musical objetivo e em que a simplicidade se revelou uma qualidade. Enquanto o primeiro, por exemplo, se baseou na elaboração de um diálogo entre um contínuo provocado pelo raspar de um objecto (que ia variando ao longo do andamento) e o mesmo tipo de sons na electrónica, o segundo era bastante mais pulsado, com nervo, numa interpretação acutilante por parte de Nuno Aroso.
A proposta de Álvaro Salazar, “Giuoco Plano” (2011) – estreia absoluta –, incluiu um vídeo de uma partida de xadrez jogada por luvas (uma branca e uma negra), num tabuleiro rodeado de escuridão. Elemento comum às peças do dia anterior: a incorporação do silêncio no discurso musical, em que sobressaiu também a utilização de instrumentos diversos, como o vibrafone e outros de altura indefinida. O discurso da peça não era óbvio, tal como nos “Estudos Incomunicantes”, e o vídeo (que a dada altura entrou em reverso) acabou por funcionar não tanto como um complemento (como penso que seria desejável), mas sim como um elemento independente que ganhou algum ascendente sobre a narrativa musical.
Por sua vez, a peça “Mán” (2011), de Virgílio Melo, em estreia absoluta, elevou logo de início as expectativas através da componente visual, dado que houve uma (tentativa de) encenação em que o percussionista se encontrava num palco completamente às escuras, atrás de um biombo (não havendo, por isso, contacto visual com ele ou com os seus movimentos). A única luz que se via estava precisamente por detrás desse mesmo biombo, refletindo os movimentos dos steel drums. A electrónica tinha como primeira função a alteração do timbre da parte instrumental, distorcendo-a. Apesar de muitíssimo interessante do ponto de vista sonoro e da criação tímbrica, “Mán” (2011), para steel drums e electronica, revelou-se demasiado longa. A peça (cujo título significa Maná) tem, sem dúvida, uma dimensão religiosa e o discurso, de pouca variação ao longo da peça, transporta-nos para uma experiência mística. No entanto, a já referida ausência de variedade acabou por comprometer a expectativa criada pela componente visual.
A peça de Pedro Junqueira Maia, “’xcuse me while I kiss the sky” (2010), foi verdadeiramente empolgante e diferente das propostas anteriores. Diferente, desde logo, por incluir guitarra elétrica, numa homenagem ao virtuoso guitarrista Jimi Hendrix (o título vem de um verso de “Purple Haze”, um dos mais emblemáticos temas de Hendrix), um elemento “surpresa” (não numa peça com este título), que se veio a revelar como tal através do tratamento que o compositor lhe deu. A guitarra surgiu sempre com caráter percutivo e, ainda assim, com linguagem idiomática do instrumento e evocativa das técnicas características de J. Hendrix, através da utilização do bending aliada a bastante distorção. Nesta peça, a electrónica resultou bastante bem, utilizando técnicas como a síntese granular, espacialização (panorâmica), que foi particularmente eficaz, e ainda um imenso sentido de pulso, não só a partir da guitarra elétrica, mas também de tom-toms, tarola e bombo. Dificilmente se terminaria melhor este programa.
O segundo programa da noite, “Transversalidades”, foi intepretado pelo grupo OpenSPEECH, composto por Carlos Bechegas (flautas, voz, objetos e electronica), Ulrich Mitzlaff (violoncelo) e Carlos Santos (laptop e live-processing).
As peças interpretadas por este grupo, de modo geral, tiveram todas elas momentos muito interressantes de interação entre as diversas componentes do ensemble, sendo de salientar a clareza dos papéis/funções que os instrumentos – incluindo, naturalmente, a electrónica – iam tendo ao longo das improvisações realizadas sobre partituras gráficas. Bechegas acabou por ser o elemento que mais se destacou no ensemble, não só por recorrer a mais instrumentos, mas também devido à variedade de técnicas que utilizou (desde os sons vocais, até ao som eólio da(s) flautas ou uma mistura entre o sopro e a altura definida). Foi, por isso, um músico que deu prazer ver e ouvir pela garra e empenho com que se apresentou neste concerto. De destacar também um momento de sublime improvisação por parte de Ulrich Mitzlaff a terminar uma das peças e a participação discreta (mas, nem por isso, menos importante) de Carlos Santos. Por vezes, a discrição é uma enorme qualidade e este foi o caso.
Ainda assim, e apesar da boa construção formal das improvisações, pareceu existir uma certa inconsequência e falta de ligação entre os elementos que iam sendo lançados no discurso musical, o que talvez se deva ao facto de nos encontrarmos perante o resultado algo imprevisível de uma improvisação (ainda que controlada por um grafismo).
3.
O terceiro dia do Festival deu ao público aquele que foi um grande concerto do Machina Lírica Ensemble, de Monika Streitová (flauta), Pedro Rodrigues (guitarra) e José Luís Ferreira (electrónica). As peças apresentadas neste programa fizeram jus ao título deste concerto: “Novo Lirismo”. A primeira grande qualidade foi a exímia interpretação do Ensemble de todas as peças apresentadas, sem excepção. Monika Streitová e Pedro Rodrigues, tanto enquanto Ensemble como individualmente, mostraram qualidades extraordinárias de interpretação, nomeadamente uma enorme segurança, sensibilidade, garra e capacidade de adaptação a textos musicais de qualidades distintas e diversas. É também de salientar o facto de todas as obras apresentadas serem estreias absolutas, um enorme sinal de coragem por parte deste Ensemble.
Da peça de José Luís Ferreira, “L’Histoire d’amour entre” (2012) para flauta, guitarra e electrónica em tempo real, há que destacar, desde logo, o imenso espaço e ambiente criados pela reverberação (muito bem programada) da secção inicial, dando ao som uma enorme expressividade. A dinâmica criada entre a guitarra, a flauta e a electrónica (que ia acelerando e recuando a velocidade dos ecos/acordes criados em resposta aos instrumentos) resultou muitíssimo bem.
A segunda secção da peça variou os espaços e as dinâmicas, permitindo que a melodia se destacasse, sendo, também ela, marcada por uma enorme expressividade e lirismo. Com um tempo mais rápido do que a primeira secção, o compositor optou por dar à peça um sentido de pulsação e ainda por criar um contraponto que contrastou com a primeira secção de discurso mais vertical (ou, pelo menos, em que se sente de uma forma mais vincada a criação de harmonias na electrónica).
Da peça de Evgueny Zoudilkine, “Aguarela III” (2012), há que destacar a expressividade conseguida através de um sentido de movimento e melodia muito interessantes, em que o som, apesar de ácido (dada a utilização de dissonâncias), se torna extremamente envolvente e sensível.
O compositor italiano Massimo Davi escreveu para Flauta e Guitarra a peça “4 Canzoni di Flora” (2011), conjunto de quatro peças cuja característica comum é a exploração variada e eficaz dos timbres dos instrumentos do Ensemble. O discurso pareceu preocupar-se com o desenvolvimento de apenas uma ideia em cada uma das peças, o que poderia ter sido bastante interessante caso tivesse existido maior contraste entre as quatros peças. Ainda assim, foram particularmente ricas a segunda e quarta peças, em que a guitarra acaba por ter maior preponderância no discurso. Na segunda, por exemplo, é utilizado um bottleneck (tubo que se usa para a técnica de slide guitar) – que altera de forma significativa o timbre da guitarra – e a flauta utiliza outra técnica especial, os whistle sounds, combinando de forma interessante dois timbres bastante diferentes daqueles que são convencionais nestes instrumentos.
Na quarta peça, por sua vez, com mais movimento e velocidade que as três anteriores, recorre-se a um objeto que prende/”abafa” algumas cordas da guitarra, que deixam de poder vibrar, produzindo, por isso, um som particularmente seco. É, portanto, uma peça que se destaca pelo contraste que vinha faltando nas três anteriores.
“SAH” (2012), para flauta, guitarra e electronica, de Carlos Caires, foi absolutamente sublime. Na primeira secção da peça, destacou-se (como vem sendo habitual no percurso de C. Caires) a excelente integração da electrónica no efetivo instrumental (aliás, arrisco dizer, a inclusão da electrónica é no plano instrumental), assim como a (micro)montagem do som. A segunda secção da peça, contrastando com a primeira por ter um caráter mais rítmico e por criar uma maior expectativa no ouvinte (causada pela imprevisibilidade do discurso, muito bem construído e coerente), estabelece uma dinâmica muito interessante entre o ensemble e a electrónica. Ao longo da peça, existem momentos bastante diversificados e contrastantes entre si – exemplo também da terceira secção, mais estática que as duas anteriores. São de destacar os últimos minutos da peça, verdadeiramente extraordinários no que respeita à construção do som da electrónica (e não só, naturalmente), nomeadamente, do seu recorte.
Petra Bachratá escreveu “Machina Lírica” em 2012, para flauta e guitarra. A peça, ácida e férrea na sonoridade, é bastante rica na variedade de recursos e na escrita para cada instrumento, particularmente para flauta. Monika Streitová foi extremamente competente, numa peça que pareceu de difícil execução técnica.
Um extraordinário concerto, não só pela qualidade das peças apresentadas, mas também porque é um privilégio poder assistir a performances com a qualidade – de excelência em qualquer parte do mundo – de Pedro Rodrigues e Monika Streitová.
O segundo programa da noite, “Improvisação”, foi verdadeiramente inesperado. O trio, composto por Ernesto Rodrigues (viola), Radu Malfatti (trombone) e Ricardo Guerreiro (computador), executou uma improvisação baseada nos sons do silêncio. Num concerto em que a componente visual complementou e reforçou a componente auditiva – ambas extremamente estáticas, com os instrumentistas praticamente imóveis do início ao fim da improvisação, assim como a evolução extremamente lenta de qualquer gesto musical executado –, acabou por existir uma ausência de tempo linear dos acontecimentos. Deixou-se, a dada altura, de ter a referência do que teria sido o início, o meio ou até o fim, existindo por isso uma nova conceção de tempo, lento, parado em si mesmo, quase como um instante que se repete e varia.
Entre os sons da respiração, o som eólio do trombone, as intervenções minimalistas da electrónica e os tremolos da viola em pppp e em registos extremamente agudos, criou-se uma atmosfera musical que se traduziu num diálogo “mudo” entre o ensemble, o espaço e o público, em que tudo – até o silêncio - se transformou na improvisação deste trio.
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