Nos dias 19 e 20 de Abril, a música de Pedro Amaral regressou ao palco do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian com a estreia da sua nova obra para orquestra, “Transmutations pour orchestre – La bibliothèque en feu” (n.º 5.3), encomendada pela Câmara Municipal de Matosinhos em 2005 e inspirada numa pintura de Maria Helena Vieira da Silva, “La bibliothèque en feu”, que pertence à colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. “Transmutations pour orchestre” foi interpretada pela Orquestra Gulbenkian, dirigida pelo jovem maestro francês, Lionel Bringuier, dentro do programa com um repertório, por assim dizer, “clássico” – “Prélude à l’après-midi d’un faune” de Claude Debussy e a Sinfonia n.º 1 de Johannes Brahms.
Escrever uma crítica a uma estreia não é uma tarefa óbvia e fácil. Além da excitação que provoca, pela curiosidade de conhecer “o novo”, traz também consigo o perigo de “mal-entendidos”, ou seja, da “má interpretação” da intenção do compositor. A música, especialmente quando tocada ao vivo, é uma matéria efémera que “aparece desaparecendo logo a seguir” no espaço e no tempo, deixando-nos com apenas uma sensação, com a qual por vezes não sabemos lidar (não mencionando todas as nuances da interpretação, do “perigo” de errar, entre muitos outros aspectos que nos põem numa situação pouco confortável). Mesmo assim, vale a pena tentar, já que a crítica constitui um dos elementos da máquina grande, que põe as novas obras em circulação, enfatizando a admiração ou criando polémicas.
Portanto, contando “as aventuras da minha própria alma” no universo sonoro deste concerto (com o foco dado à nova obra de Pedro Amaral, obviamente, por razões estratégicas e estatutárias deste "Espaço Crítica para a Nova Música") tenho a salientar que tive algumas reticências quanto à programação que colocava “Transmutations pour orchestre” entre duas obras orquestrais do repertório “clássico”. Preferia ouvir esta peça durante um festival de nova música, cujo ambiente, por assim dizer, “mais experimental” atrai um público um pouco diferente dos visitantes regulares das salas da Fundação. Por outro lado, ao descobrir as fontes de inspiração desta obra, que além da referida pintura de Vieira da Silva tem também Anton Bruckner, Richard Strauss e Richard Wagner (como nos revela o próprio compositor), percebi a lógica dos programadores deste concerto, não apenas a nível pontual mas também a nível mais amplo no que diz respeito à programação da Temporada 2011/12 da Gulbenkian, preenchida com obras de mestres românticos da prática orquestral (Wagner, Brahms, Bruckner, Tchaikovsky ou Rachmaninov, entre outros). Fazendo agora um pequeno “à parte”, mesmo que o repertório “bem educado”, proposto pela Fundação na Temporada 2011/12 seja, como sempre, preenchido com concertos-estrelas de altíssima qualidade, sinto falta, enquanto ouvinte, de alguns desafios, de apresentações de música que atravessassem a fronteira do lado “polido” para o “mais provocativo” ou “mais experimental” (já para não mencionar a escassez da criação musical portuguesa neste repertório, cuja excepção em forma da obra de Pedro Amaral constitui, precisamente, o comprovativo da regra).
[«Transmutations pour orchestre – La bibliothèque en feu»] é uma peça com um percurso longo e que atravessou [20 anos] da minha existência”, revela-nos Pedro Amaral. O ponto de partida foi uma peça para três pianos, escrita ainda quando o compositor estudava na Escola Superior de Música de Lisboa, “Música para Três Momentos do Espaço”, que nunca chegou a ser estreada. Mais tarde, já no IRCAM em Paris, o compositor utilizou alguns aspectos dessa matéria inicial para compor “Transmutations” para piano e electrónica em tempo real (n.º 5.1), cujo móbil foi a “exploração da espacialidade enquanto parâmetro composicional”. Em 2005 Pedro Amaral recebeu da Câmara Municipal de Matosinhos uma encomenda de uma peça para orquestra e regressou ao mesmo “caudal”, desenvolvendo uma série de versões desta matéria comum. Contudo, só a experiência de leccionar Orquestração na Universidade de Évora (a partir de 2008), que, de certo modo, transformou a sua maneira de pensar em grandes formações instrumentais, e a proposta de Risto Nieminen, director da Fundação Calouste Gulbenkian (há alguns meses), proporcionaram o impulso definitivo para acabar o manuscrito criado na altura. “Este conhecimento e esta prática pedagógica fizeram-me alterar uma grande parte do meu manuscrito, reescrever muitas passagens e até criar pontes inesperadas com certas obras-chave do pensamento orquestral”, enfatiza Pedro Amaral.
A linguagem musical de Pedro Amaral amadurece na expansão permanente de vários núcleos do material musical (de uma base genética, por assim dizer) no espaço melódico e harmónico – a forma evolui através destas zonas de expansão, enquanto o material se submete à transformação no tempo. Esta técnica de compor cria uma tendência para juntar as obras em ciclos, nas quais os núcleos de um material primário dão origem às suas várias “transmutações”. Neste contexto a inspiração na pintura de Vieira da Silva, “La bibliothèque en feu” (“A biblioteca em fogo”; 1974), faz todo o sentido “pela concentração das formas e da paleta cromática, pela redução notável do vocabulário, pelo admirável aprofundar do gesto numa série de variações consequentes”, em que as formas mais simples dão origem “a desenvolvimentos de extraordinária riqueza”. É precisamente este processo que Pedro Amaral procurou reproduzir na sua música.
“Transmutations pour orchestre” é uma obra que evoca a tradição da potência orquestral romântica numa linguagem de micro-motivos que tecem um denso fluxo musical, em que as culminações surgem do interior do magma sonoro. Na construção formal, cujo fundamento é constituído por um jogo entre os vários naipes da orquestra, podem-se distinguir 3 secções (contudo sem óbvias divisões formais, visto que a peça constitui um fluxo quase contínuo de tensão, drama e energia) – primeira, repleta de energia e culminações abruptas, na qual decorre a apresentação dos núcleos motívicos (por exemplo o “sinal do Código Morse” das trompas) que aparecem em vários momentos da peça; segunda, que se distingue pelo apaziguamento e pela rarefacção da textura sonora; e finalmente a terceira, que nasce directamente da segunda, em que retorna à energia da parte inicial sustentada com uma pulsação constante atribuída ao bombo e contrabaixos, conduzindo o discurso ao “barulho” final. Não recorrendo a citações, “Transmutations pour orchestre” constitui contudo uma homenagem aos grandes mestres do classicismo, romantismo e pós-romantismo, a nível de gestos melódicos e estratégias de junção de instrumentos, como Anton Bruckner (Sinfonia n.º 7, cuja orquestração do inicio é quase literalmente reproduzida na transição para a última parte da peça), Richard Strauss e Richard Wagner no que diz respeito à “evocação simbólica de um mecanismo” de escrita para grande orquestra, que neste caso inclui uma secção expandida de sopros e metais e também um conjunto alargado de percussão. Pedro Amaral revela-nos ainda que no fim de “Transmutations” há um piscar de olhos a Claude Debussy, “a uma das suas mais emblemáticas páginas” (“La Mer”), o que talvez seja mais uma razão para dissipar as minhas dúvidas quanto à coerência do repertório deste concerto. E mais do que isso... na entrevista dada à Antena 2 no dia 20 de Abril, depois da segunda execução de “Transmutations” o compositor fala ainda da evocação simbólica da “eufonia” do final do segundo acto de “As Bodas de Figaro” de Mozart, que na sua peça dá uma sensação de uma “paz acústica” mesmo nos últimos compassos da partitura. São, de facto, muitas “evocações”, “inspirações”, e “alusões” numa peça que tem a duração de, mais ou menos, 20 minutos.
No que diz respeito à intepretação da Orquestra Gulbenkian dirigida pelo jovem maestro francês Lionel Bringuier, gostaria de sublinhar dois aspectos. Por um lado tive a sensação que a Orquestra tem capacidade de ser um instrumento sólido (especialmente no caso da secção de cordas), o que de facto é um dos maiores elogios que uma orquestra pode receber, mas por outro, senti falta do trabalho nos pormenores (nos quais, dizem que está escondido o diabo, pelo menos segundo um ditado polaco). No “Prelúdio” de Debussy, uma das obras mais emblemáticas na história da música do século XX (e por isso tão difícil de ser (re)interpretada uma e outra vez), mesmo que se tenha mantido o ar efémero “do impressionismo francês”, por vezes, senti falta da distinção dos planos tímbricos, dos quais, de facto, depende a subtileza e a riqueza desta música, e o que, aliás, aconteceu também no caso de “Transmutations pour orchestre”. A variedade dos planos orquestrais, a distinção das texturas, das cores, das luzes e das sombras, e sobretudo a precisão rítmica (já que “Transmutations” emprega ritmos complexos, como por exemplo a combinatória das unidades binárias e terciárias) são qualidades que criam o fluxo na peça de Pedro Amaral, levando, de certo modo, a sonoridade orquestral aos seus próprios limites. São mesmo estes valores que na interpretação da Orquestra Gulbenkian sob a direcção de Lionel Bringuier podiam ser mais trabalhados e mais “audíveis”.
E quanto às minhas conclusões de natureza mais pessoal e, por assim dizer, “emocional”, acho que a nova peça orquestral de Pedro Amaral tem uma expressividade que chama a atenção, precisamente, pela “simplificação” da linguagem musical, dando-nos, enquanto ouvintes, claros pontos de referência, tal como, aliás, fez Witold Lutosławski, há 20 anos, na sua emblemática Sinfonia n.º 3. Não há dúvidas que “Transmutations pour orchestre – La Bibliothèque en feu” inscreve-se na tradição da composição orquestral desde o romantismo do século XIX, passando pelas “lições” do século XX de Claude Debussy (cor), Igor Stravinsky (ritmo) ou Karlheinz Stockausen (espaço). Mesmo assim estas “transmutações” parecem-me algo descontínuas e reservadas no gesto, não tirando proveito das capacidades sonoras da máquina orquestral e não encontrando esta “riqueza extraordinária” escondida na imagem da “Biblioteca em fogo”, que certamente constitui um ponto de partida para criar narrativas excepcionais (mesmo que sejam mais abstractas). Enquanto ouvinte que, um pouco intimidado, enfrenta uma máquina orquestral gosto de ter a oportunidade de seguir uma grande narrativa, como, por exemplo, a 1.º Sinfonia de Johannes Brahms que preencheu a segunda parte do concerto, ou como, no caso mais extremo, a 7.º Sinfonia de Anton Bruckner à qual, aliás, Pedro Amaral faz referência, ou ainda como a “Turangalila” de Olivier Messiaen... Mesmo assim, para concluir, “inclino a minha cabeça perante” Pedro Amaral pela sua coragem e capacidade de dominar este meio de expressão exigente, que em forma de “Transmutations pour orchestre”, sem dúvida nenhuma, constitui um diálogo subtil com a tradição e espero pelas suas próximas “aventuras” no domínio da música orquestral.
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