A temporada 2012 do Quarteto de Cordas de Matosinhos teve o seu segundo concerto no Teatro Constantino Nery a 8 de Fevereiro, ao contrário do que, aliás, fora previamente anunciado. O concerto permitiu-nos ouvir mais uma das recentes encomendas da Câmara Municipal: “Contrafacção folclórica” de Telmo Marques. Como já referimos em anterior texto, estas encomendas tiveram como ponto de partida o recurso à música tradicional portuguesa, sendo obviamente deixada ao compositor a escolha do método de integração da mesma no seio da sua linguagem pessoal. Em substituição da anunciada partitura de Paulo Ferreira-Lopes, foi executada “Le feu qui dort” de Miguel Azguime, datada de 2009, obra que aliás também foi objecto de uma encomenda da municipalidade. A coabitação das duas obras num mesmo concerto, permite uma reflexão, creio que oportuna, sobre dois tipos de atitude, no que diz respeito à actividade de compositor.
Se bem que o termo contrafacção tenha adquirido uma conotação pejorativa, originalmente, num contexto musical, denotava apenas o uso de uma mesma música com textos diferentes; mais tarde, já em pleno século XX, veio a significar o uso consciente de um qualquer modelo como base para elaboração de uma partitura. No caso em questão, o modelo não é tanto um qualquer folclore mas, antes, um momento específico da sua elaboração na linguagem musical erudita; encontramo-nos perante um exercício de estilo na esteira de um “folclore imaginário” modernista, comum na música do século passado e representado superiormente em Portugal por um Fernando Lopes-Graça. Seja dito em abono de Telmo Marques que as três peças que constituem a obra, são tecnicamente sólidas, demonstram musicalidade, idiomatismo instrumental e um sentido seguro do efeito. Igualmente, ao apresentar o seu trabalho, o compositor não se esconde atrás de um certo discurso pseudo-estético com que, muitas vezes, certos autores tentam esconder limitações, comodidades e opções mais conformistas.
“Le feu qui dort” retira o seu título de um poema, em francês, de Mário Dionísio e possui uma notável e subtil singularidade. A clareza técnica e da linguagem é minada ou, se preferirmos, realçada por um discurso em que, paradoxalmente, elementos característicos da linguagem de Miguel Azguime, aparecem tratados como autênticos objets trouvés. Esta atitude cria ressonâncias insuspeitadas, com algo de maceração alquímica da matéria sonora.
Penso não ser abusivo remeter o leitor para o texto poético que inspirou a obra, lembrando o que diz o poeta: “le feu qui dort est éveillé” (“o fogo que dorme está acordado”). Perante a variedade, a irredutível complexidade e mesmo o desconcerto do mundo sonoro pode-se sentir e conceber o ofício de compositor como um artesanato competente que recolhe estilos, aqui e ali, de maneira mais ou menos distanciada; como um primado da referência por sobre a busca de uma poética pessoal. Mas sem uma ponta de paradoxo, sem chama subcutânea (“sob a pele de todo o meu corpo” diz Mário Dionísio no mesmo poema), assuma ela a forma que assumir, é quase inevitável a vacuidade do discurso. Caminho sinuoso, aberto aos desvios, às perplexidades, aos falhanços mas também, a algumas provisórias e compensadoras vitórias. Citando o poeta: “Como calá-lo?”
Para terminar, há que referir a qualidade dos intérpretes, de par com o esforço da Câmara Municipal de Matosinhos, que tem acarinhado essa forma rainha da música de câmara que é o quarteto de cordas. Esperemos que a tão falada crise, com a tentação da apressada definição de prioridades, não suprima tal opção medularmente cultural, assim como uma política de encomendas, que tem ajudado a constituir um reportório variado e extenso de música contemporânea portuguesa.
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