Virgílio Melo (n. 1961) esteve em evidência, sábado, 24 de Setembro, no Teatro da Vilarinha. Em cartaz, obras que cobrem um período de 22 anos de criação musical – por ordem cronológica, “Nó” (1985; 13’), para flauta baixo solo; “A Tre” (1990; 3’), para três clarinetes; “A Glimpse of the Holy Darkness” (1995; 22’), para flauta, clarinete e violoncelo; “Circuitus” (2000; 13’), para flauta alto, flauta baixo e electrónica em tempo real; e “Canso Entrebescata II” (2007; 17’), para violino solo. A servir esse percurso, músicos com um vasto curriculum – Monika Streitová (flauta), Jorge Salgado Correia (flauta), Radu Ungureanu (violino), Filipe Quaresma (violoncelo) e Luís Filipe Santos (clarinete) –, a par com os jovens intérpretes Fábio Menezes e Valter Palma (clarinete), e Rui Dias na electrónica.
A reflexão crítica do evento que agora se apresenta constitui uma elaboração sobre um dos aspectos com que lapidarmente introduziu Álvaro Salazar o recital – é reconhecível em Virgílio Melo uma personalidade artística singular e coerente.
Embora não caiba aqui definir essa singularidade, importa apresentar o que a torna, e o que ela torna, evidente – uma tensão entre a literalidade do texto e a pluralidade do sentido, entre o rigor da escrita e aquilo irredutivelmente disperso que ela possa veicular. É nesse contexto que ganham contornos a pertinência e expressividade da electrónica e das técnicas instrumentais, convencionais e não convencionais, usadas, fruto de uma imaginação que voluntariamente se disciplina e restringe, prevalentemente, aos instrumentos tradicionais, mas não sem explorá-los nos seus limites.
Dito isso, o conjunto das obras em cartaz, compostas entre 1985 e 2007, e espaçadas entre si em cerca de 5 anos, oferece-se à reconstrução de um percurso artístico em que é observável um crescendo e estabilização na exploração de possibilidades composicionais.
Desse ponto de vista, e numa quase coincidência com a regra de ouro, encontraríamos em “Circuitus” (2000), um clímax em que a palavra, desprovida do seu valor significacional, emerge com um carácter alucinatório no seio da música que sai dos instrumentos e daquela que, discreta, resulta, como mão invisível, da electrónica em tempo real.
A obra mais recente em cartaz – “Canso Entrebescata II” é mais económica nos meios, apresentando uma informada e refinada exploração das possibilidades instrumentais, em que o virtuosismo que se exige ao intérprete contrasta com o volume e com a espectacularidade – tudo se passa, parece, no corpo e na superfície do instrumento. Naquilo que poderia ser entendido como uma extensa elaboração do incomunicável, o atrito das cerdas e resina nas cordas e no cavalete do instrumento, o aflorar das cordas na produção sistemática de harmónicos são estendidos em 17 minutos em que raramente uma sonoridade forte é atingida.
“A Glimpse of the Holy Darkness” revela o mesmo conhecimento das possibilidades dos instrumentos, bem como uma eficaz e equilibrada escrita camerística. Pontos e frases, servidos por técnicas instrumentais convencionais e não convencionais, são aí articulados numa escrita refinada em que a temporalidade emerge também como elemento importante – frases de duração ritmada são sucessivamente postas num extenso conjunto em que raramente é permitido um clímax.
Tudo isso se encontra, com a força que têm as coisas emergentes, em “Nó”, cronologicamente, a primeira do conjunto. De duração considerável, sobretudo para um instrumento monofónico a solo, a obra torna manifesta uma construção e gestão impecável da tensão no interior, articulação, e sucessão de frases em que a imaterialidade do sopro (pneuma), a materialidade do instrumento, e o contínuo do som (altura definida/indefinida) concorrem para um conjunto coerente e expressivo.
Na perspectiva em que é articulada esta reconstrução de sentido, “A Tre”, para três clarinetes, permanece distinta do conjunto. Trata-se de uma obra mais imediatamente evidente nos processos de escrita e eficiente do ponto de vista comunicativo – um compacto conjunto de 3 minutos num contínuo registo meio-forte/forte que se extingue num longo trilo.
A terminar, destaque para a Oficina Musical – o recital resulta do Ciclo Compositores Portugueses Contemporâneos, integrado na 34.ª temporada desta instituição fundada em 1978, por Álvaro Salazar, que, consistentemente, e a um nível de excelência, tem prestado um inestimável serviço à cultura em Portugal no domínio da música contemporânea.
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