É possível dar várias respostas à pergunta: sobre o que é a nova opera de Alexandre Delgado, “A Rainha Louca”? De forma declarada é sobre Maria I de Portugal (1734 – 1816), a primeira rainha do país que se tornou república em 1910. Contudo a ópera é também sobre outros assuntos e mais adiante pretendo discutir brevemente alguns deles.
Respondendo alternativamente à questão colocada é possível constatar que a segunda obra dramática de Alexandre Delgado é sobre mulheres na ópera. De facto, todos os papeis nesta peça em dois actos são femininos: a rainha (Maria I, a rainha de Portugal – Ana Ester Neves, soprano), D. Henriqueta (a duquesa de Lafões e assistente da rainha – Maria Luísa de Freitas, meio-soprano), as três damas – verde (Ana Paula Russo, soprano), vermelha (Maria Luísa de Freitas, meio-soprano) e amarela (Teresa Cardoso de Menezes, soprano); e a empregada (Rosa, afro-portuguesa, referida no libreto numa maneira pejorativa como “criada negra” – Nilma Santos, actriz). Mesmo que pouco comum para o mundo de ópera, “A Rainha Louca” não é o caso único de ópera contemporânea que inclui um elenco inteiramente feminino. Em 1997-98 Louis Andriessen e Peter Greenaway realizaram “Writting to Vermeer”, na qual, em vez de Vermeer, aparecem apenas mulheres que escrevem cartas ao pintor flamengo. Essencialmente, o primeiro acto de “A Rainha Louca” é dedicado tanto à personagem de Maria I e a sua instabilidade mental, como à sua relação de confronto com a D. Henriqueta. O segundo acto, dominado pelas figuras das três damas, apresenta reflexões irónicas sobre Portugal e a contribuição de Dona Maria à história e ao desenvolvimento do país.
Apesar de a ópera ter apenas personagens femininas e apresentar as relações mútuas entre elas, não se pode descurar que o libreto foi escrito por um homem – o próprio Alexandre Delgado. Mais do que isso, o libreto é baseado na peça de Miguel Rovisco (1959 – 1987), “O tempo feminino” (1987), que trata de feminilidade. Por conseguinte, as personagens femininas estão apresentadas apenas através do discurso masculino que as objectiva do ponto de vista masculino, quer que o ponto seja de Rovisco, Delgado ou do encenador, Joaquim Benite. Quando o público toma consciência deste facto a situação torna-se intrigante e sugere que de facto “A Rainha Louca” não é sobre mulheres, mas mostra como os homens vêem as mulheres na ópera.
Mesmo que não pareça à primeira vista, os papeis dados às mulheres nesta peça são bem comuns tanto para ópera convencional como para a sociedade patriarcal. A primeira reinante de Portugal, Maria I, é representada como uma mulher louca, cuja loucura tem por objectivo ensombrar o seu poder e as suas conquistas. As damas, Henriqueta e Rosa, aparecem como estereótipos; quando reflectem sobre elas próprias usam, na realidade, um discurso masculino que torna convencional o papel das mulheres – esposas, mães, amantes e empregadas. Rosa, a “criada negra”, é tratada mais como uma criatura pouco significante do que um ser humano, não tendo mesmo direito para cantar – o seu papel é falado. Mesmo que a Rosa fale pouco ela possui forças corporais, “perigosas” e sensuais, que se revelam no fim da ópera. Este ponto de vista é explicitamente patriarcal.
A encenação de Benite reforça o ponto de vista do libertista relativamente às mulheres no palco. No primeiro acto, que contém vários diálogos entre Maria e Henriqueta, a encenação é convencional pois mostra as duas personagens em poses estáticas, praticamente sem movimento quando a cantar, tal como em muitas óperas da corrente principal. Além disso, os corpos das cantoras escondidos debaixo das camadas dos trajes da época, perucas e maquilhagens, traduzem uma abordagem realista à representação das situações e personagens. Porém, ópera e realismo não são bons amigos, pelo menos devido ao facto óbvio de as personagens cantarem algo que na vida real não seria cantado. Dessa froma o próprio canto “nega” sempre a abordagem realista e faz com que ela se torne grotesca. Depois de se percecionar algumas estratégias e procedimentos introduzidos há mais de 30 anos pelos encenadores inovadores da ópera contemporânea (por exemplo Wilson, Sellars, Greenaway, van der Aa, Korot), a escolha da abordagem realista parece uma contradição desnecessária. No segundo acto a encenação trona-se mais viva devido aos dinâmicos diálogos entre as damas, contudo a tentativa (falhada) de conseguir realismo permanece. O momento mais intrigante da encenação encontra-se mesmo no final, quando um conjunto de bailarinas afro-portuguesas seminuas aparece subitamente no palco numa dança sensual, ilustrando desta maneira as fantasias exóticas de Rosa. Embora esta cena confirme como os representantes das culturas não ocidentais – “os Outros” – eram (e ainda são) vistos na Europa num contexto político e social, ela constitui também uma prova que a fantasia funciona muito melhor na ópera do que o realismo. Nesta cena “os Outros” são representados por Rosa e pelas bailarinas afro-portuguesas contudo as mulheres objectivadas são também “os Outros” para os homens brancos e heterossexuais – os detentores de poder. Este é o ponto em que as personagens, Rosa (representante da cultura não ocidental) e Maria I (não só mulher, mas também louca) estão muito próximas – uma a outra – apesar da distância fundamental entre elas.
Regressando à questão inicial – sobre o que é esta ópera – até este ponto mostrei como a peça parece ser sobre Maria I e as mulheres na ópera, porém é possível constatar também que é sobre loucura. O tema da loucura parece especialmente fascinante para Alexandre Delgado. A sua primeira ópera foi intitulada “O Doido e a Morte” e “A Rainha Louca” é a segunda parte da sua trilogia operática sobre este tema. Ao longo da sua história a ópera foi com frequência o lugar certo para representar e incluir cenas de loucura especialmente em conexão com personagens femininas. No século XVIII a loucura era vista como uma contradição do Raciocínio, e só no século seguinte institucionalizou-se como uma doença mental. Loucura define os limites de ordem social que frequentemente resulta no perigo de isolamento do “louco” – o que aconteceu na realidade a Maria I confirmando assim a política do isolamento apresentada nesta ópera. Todavia, mais do que a maneira como Maria I foi representada enquanto mulher louca, queria agora analisar como a música ecléctica de Delgado, interpretada pela OrchestrUtopica sob a direcção do próprio compositor, podia ser teorizada como uma metáfora da destruição da ordem reconhecível. A música de Delgado explora várias linguagens musicais. Por um lado é possível reconhecer algumas citações que o compositor incluiu, mas por outro a música apenas simula várias linguagens musicais sem fazer citações, por exemplo: a música de Gabriel Fauré, um minueto da época, um motivo “Nibelung” de Wagner, fragmentos da música de cabaré, música tradicional de Espanha, etc. Ainda por cima, cada uma das personagens principais tem um instrumento destacado ao seu papel, isto é – harpa à Maria, cravo à Henriqueta e marimba à Rosa. Esta abordagem ecléctica é aplicada tanto na escolha das linguagens musicais como na orquestração (frequentes mudanças de instrumentos que introduzem os materiais). A decisão de juntar várias gramáticas opõe a lógica da própria língua. Quando este facto é enfatizado pela incompreensão ocasional das palavras cantadas, a construção inteira da peça parece questionar a inteligibilidade da relação entre música e texto, sendo em si própria uma espécie da estrutura de loucura.
Finalmente é possível constatar que “A Rainha Louca” é também sobre política. O segundo acto da ópera introduz um texto que questiona as realizações de rainha Maria I (por exemplo declarando que a Basílica da Estrela, cuja construção foi lançada por ela, é nada mais do que um ponto de referência), e apresenta várias insinuações relativamente ao estatuto do estado de Portugal na comunidade internacional. Parece que estas declarações com frequência atingem situações contemporâneas e isto mostra como esta ópera toca as matérias da política quotidiana. Relativamente às questões do poder “A Rainha Louca” confirma a força dos homens para representar mulheres na ópera, confirma o poder de decidir onde começa a loucura e finalmente exemplifica o poder de compor e encenar uma ópera hoje em dia e de tê-la interpretada numa das instituições culturais mais respeitadas, com cantoras excelentes e por músicos de destaque. Todos estes poderes, porém, não fazem as perguntas mais necessárias – como a arte de ópera é suposta abraçar a época dos novos meios de transmissão e comunicação e como isto pode afectar tanto o seu estatuto como a sua função. Por conseguinte, apesar da boa execução e da aura de um evento social significante, é muito possível que “A Rainha Louca” não deixe uma marca surpreendente no mapa mundial da ópera.
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