A música contemporânea, claro, tem pouco público – poucos votantes, ia eu escrever – por isso é importantíssimo poder ter acesso às novas músicas que se fazem por cá e por esse mundo fora, que são muitas e variadíssimas, e que no nosso meio alfacinha, não fossem projectos como o do Sond’Ar-te Electric Ensemble entre outros, muito poucos, não a conseguiríamos ouvir onde quer que fosse. E não se trata de puro snobismo nem nada disso. Trata-se simplesmente que a música é um elemento constitutivo e fundamental na construção do pensamento; de qualquer pensamento, portanto, não ter acesso à música que se faz hoje em dia equivale ao que seria não ter acesso à tecnologia actual: ou seja é tentar deixar-nos num isolamento que faz lembrar os tempos nos quais os outros países tinham televisão a cores, mas nós por cá tínhamos que esperar. Orgulhosamente sós...
Assim, a ideia de lançar um Fórum Internacional de Jovens Compositores, iniciativa, organizada e produzida pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble e pelo Goethe Institut, teve lugar entre os dias 18 e 20 de Maio, e neste último dia permitiu-nos ouvir obras de Abel Paúl, Ana Seara, Luc Doeberener, Gonçalo Gato e Igor Silva, seguidas de um “Cadavre Exquis” composto por micro-peças dos compositores Ângela Lopes, Bruno Gabirro, Isabel Pires, João Madureira, José Luís Ferreira, Patrícia Sucena de Almeida, Pedro Amaral, Ricardo Ribeiro, Sara Carvalho e Vasco Mendonça. A interpretação das obras foi feita pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble, sob a direcção de Pedro Neves.
O dispositivo cénico – já preparado para a execução da primeira peça do programa “Línea de Vacío” do espanhol radicado na Alemanha, Abel Paúl – estava “invertido” em relação ao público, coisa que na memória deste crítico remete imediatamente para a peça “Catastrophe” de Samuel Beckett, na qual um personagem lamentável se encontra no palco enquanto um encenador e uma assistente desde a plateia tentam deixar no estado mais catastrófico possível o dito personagem. Cena à qual assistimos a partir de backstage. Por sorte para os ouvintes o concerto que seguiria estava longe de ser uma catástrofe, apesar de que, claro, para este crítico teve obras de níveis diferentes, sendo algumas muito mais marcantes que outras.
O autor da peça “Línea de Vacío” explica-nos que a inversão do dispositivo tem por objectivo reduzir a visibilidade por parte do público, deixando deste modo o auditor livre à sua imaginação no sentido de como é produzida a materialização de certos sons e timbres. Baseada num esquema de pedais, por vezes oscilantes, que domina ao longo de praticamente toda a obra, esta parece remeter para as correntes dominantes na música que vai dos finais dos anos 70 aos anos 80. Tendo em meu entender uma interpretação impecável e sendo tecnicamente correcta, “Línea de Vacío” não parece encontrar uma voz original. E se bem que os seus materiais constitutivos podem ser interessantes, a peça não os consegue desenvolver de um modo original.
Diferente é o caso dos “Pensamentos Perdidos”, de Ana Seara, que parece não ter como único precedente a bagagem “clássica” da formação composicional teórica – que tanto marca a maioria dos compositores a partir da segunda metade do século XX –, e parece interessar-se também em muito pelos sons e a sua articulação como elemento constitutivo do seu trabalho. Isto de interessar-se pelo som, que parece uma evidência tratando-se de música, em realidade não é tal: lembremos as investigações feitas já nos anos cinquenta do século passado por Robert Francès, nas quais este demonstra que a identificação de estruturas seriais pela simples audição de uma obra é altamente improvável, mesmo para músicos com muita experiência. A composição hoje, bem sabemos, passa sobre tudo pela relação que o compositor estabelece com o computador – até quando este é usado só no âmbito do “tempo real”. A belíssima peça de Ana Seara faz-nos lembrar que, apesar de tudo, a música pode seguir sendo por vezes uma simples affaire de sons. E isso, por si só, hoje já é algo magnífico. Este crítico fica a espera de saber qual o aporte que poderá trazer a electrónica a estes “Pensamentos Perdidos”, já prometido para uma próxima apresentação da obra.
A partir da excelente ideia de fazer uma obra em contra-ponto com o “Kontra-Punkte” de Karlheinz Stockhausen, “P(S) alpha”, a obra de Luc Doeberener, começa, justamente, com o uso da “oficina electrónica” e com o piano num carácter rapsódico, mas não deixa identificar qual será o caminho que o compositor irá seguir. É com a aparição do quarteto – violino, violoncelo, flauta e clarinete – que começa a aparecer-nos à frente o jogo duplamente contrapontístico apontado pelo autor: este desenvolve por um lado um contraponto em relação às “velhas” estruturas stockhausenianas – no caso de se ter presente a obra no momento de ouvir “P(S) alpha” – e, ao mesmo tempo, começa a deixar entrever um segundo contra-ponto à ideia de unidade / duplicidade em que está baseada a peça, assim como a forma precisa e concisa com que esta unidade dupla se exprime neste interessantíssimo quinteto “+” (quinteto e dispositivo electrónico).
Gonçalo Gato, ao apresentar “Configurazioni”, fez-nos parte de ser a sua obra uma tentativa de interpretar a música no seu aspecto morfológico. Ou seja, num carácter baseado mais no “escultural” do que nas formas musicais propriamente ditas, falando-nos também de “espaço” e “transformação”. Coisas que, per se, podem se considerar inerentes de todos modos ao fenómeno musical, sonoro, ficando assim pouco clara a ligação da ideia composicional com a escultura ou a “instalação” plástica. Para este ouvinte, a peça funda-se e funde-se numa série de ideias confusas, não encontrando o “espaço” que parece buscar. A “ajuda” da electrónica, neste caso, também fica reduzida, e só parece funcionar como um sistema de caixa de ressonância nesta obra que se me afigura deveria ser revista e reconsiderada.
Num registo mais deslumbrante e groovy que as peças anteriores, o flipbook que evoca o título da peça de Igor Silva, imagina-se como o desenho de um fogo de artifício que vai se formando folha a folha, desenho a desenho, para depois e adequadamente ir buscar fogos mais “naturais”. Talvez na parte central da obra se sinta a falta de dinâmicas mais matizadas e de algum material menos estático, de “chispa” dá vontade de dizer, sobretudo no que ao “discurso” violonístico respeita – e uma vez mais Suzanna Lidegran deu provas, como todos os seus colegas aliás, do altíssimo nível interpretativo que é o deles. Mas rapidamente depois é este – o violino – que marca o retorno do “artifício”, voltando a um registo no qual o compositor mostra sentir-se perfeitamente à vontade, inclusivamente com os modes de jeu do próprio instrumento, fechando assim o círculo, ou o próprio flipbook para dizê-lo melhor, deixando-nos como presente uma bela lembrança e um belo sorriso nos lábios.
A organização das peças inseridas no “Cadavre Exquis” foi muito interessante. Sendo sobretudo surpreendente constatar que, tratando-se de obras – micro-obras – individuais, portanto de carácter diferente, o problema da “linguagem” (a)parece como o (epi)centro de tudo aquilo que “faz” boa parte da música contemporânea desde as ultimas décadas. Este “Cadavre Exquis” – ao menos organizado de modo que ouvimos no Goethe Institut nesse dia – confronta-nos com o problema aparentemente ainda não resolvido dos processos de legitimação que parecem preocupar por vezes muito mais aos compositores que os seus próprios resultados musicais. Daí, talvez, esse sentimento de unicidade, ao ouvir uma certa ausência de “vozes” ou de discursos diferenciados ou ao menos com alguma “discordância”, em dez compositores diferentes. A descargo, pode-se imaginar que esta unicidade pode dever-se à unidade tímbrica imposta por si só pelo quinteto, e ainda pela selecção e ordem escolhida para a sua execução, e que tudo isto ajude a essa tal unidade de linguagem; mas não parece muito convincente que se trate só disso. Este crítico espera que o exercício do cadavre exquis, ao colocar uma série de micro-peças umas a seguir às outras, não venha a pôr em evidência uma eventual saturação devida a uma produção que comece a tender ao consenso e a estandardização, o que poderia ter por resultado que, a curto ou médio prazo, sejam poucas as vozes que se destacam. Mesmo assim, o “Cadavre Exquis”, fica decididamente exquis, e esperemos que a reflexão sobre as linguagens das novas músicas, faça com que cada um dos compositores se afirme na sua, de modo a confrontarmo-nos na próxima selecção com um Exquis que seja absolutamente Vivace.
Em suma, e pondo a barra muito elevada – como acho que deve ser posta, já que de verdadeiros talentos se trata –, o concerto deu a ver – a ouvir, claro – uma boa “ponta” do iceberg composicional de alguns dos jovens compositores actuais que, decididamente, mereceriam dispor de muitos fóruns deste tipo para poder ouvir e pôr em prática, e confrontar com a “realidade” da interpretação as suas obras, com muito maior frequência daquela que lhes é oferecida. Sem dúvida, o extraordinário Sond’Ar-te Electric Ensemble e o Goethe Institut de Lisboa farão por isso. Nós, lá estaremos novamente. Espero que o Estado tome consciência da sua responsabilidade no apoio e desenvolvimento de projectos culturais desta qualidade e raridade, ajudando a manter a primeira e a combater esta última.
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