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O Sonho
ANNE OZORIO
2010.04.26

Na noite passada no Robin Howard Dance Theatre em Londres a London Sinfonietta apresentou a estreia mundial da nova ópera de câmara de Pedro Amaral, “O Sonho”. A obra é baseada numa peça inacabada de Fernando Pessoa, o génio excêntrico da literatura portuguesa, cuja vida inteira foi uma obra de arte. Fernando Pessoa é o Edgar Varèse da literatura, desbravando novos caminhos da interpretação, da realidade e identidade.

Os sonhos existem por uma razão, têm um significado, não obstante, a sua própria natureza é de não seguir as regras da razão. E qual é o motivo? Em várias culturas os sonhos pertencem à realidade alternativa. Fernando Pessoa mostra-nos que é possível usar sonhos criativamente.

A abordagem imaginativa de Pedro Amaral é robusta. A sua música torna-se num protagonista activo – é altamente dramática e cheia de carácter pessoal. A tradução inglesa está projectada no pano de fundo, como se fosse materializada directamente na máquina de escrever de Pessoa, uma outra “pessoa” invisível a operar numa dimensão diferente. Afinal, num sonho as palavras individualmente não têm tanta importância como o impacto emocional na totalidade.

Aparece Pessoa (Jorge Vaz de Carvalho) que, como um mestre de cerimónia, abre o espectáculo com palavras provocantes: “Vejo em frente de mim, no espaço do sonho transparente mas real, os rostos e gestos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos”. As personalidades de transmissão da sua obra, os heterónimos vestidos como ele, “flanqueam-no”, mas obviamente não são Fernando Pessoa.

Salomé, a personagem principal da peça que Pessoa está a escrever, torna-se viva. A desempenhar o papel dela, Carla Caramujo é uma força de natureza. A sua voz adiciona nuances e individualidade às partes cantadas, embora as palavras nem sempre façam sentido. A personagem vive no estado dum sonho intenso. Não percebe porque é pedida por algo tão horrível como a cabeça de São João Baptista, que reconhece como uma espécie da sua alma gémea, pois os profetas sonham com coisas que ainda não aconteceram. Todavia, a cabeça que vê (temos que a imaginar) pertence ao santo ou a um criminoso comum? Salomé nunca tem certeza e este conflito constitui a essência do seu dilema.

Pedro Amaral escolheu uma instrumentação que integra as ideias da peça na música. O compositor chama isso "dédoublement", porque é mais do que um sombreamento simples. Um conjunto desproporcionalmente grande de violoncelos que em teoria pode parecer desequilibrado, na prática funciona lindamente. Os violoncelos são liderados por uma harpa reforçada nos graves por um contrabaixo, um xilofone e uma marimba. Isso é a música de Salomé, cintilante e sensual, mas com uma pulsação básica e forte da harpa (Helen Tunstall). Três flautas adicionam uma “personalidade” secundária e distinta com algumas passagens bem inventivas que talvez possam ser desenvolvidas em obras futuras. Pedro Amaral é um compositor ainda na casa dos trinta mas “O Sonho” é uma obra surpreendentemente madura e assertiva. A ópera pode criar confusão na primeira escuta, mas dado o passo conceptual que o significado está além das palavras implica que a música começa a falar por si própria. Na obra existe uma passagem particularmente bem escrita que ultrapassa o canto convencional, pois é um uivo prolongado e sem palavras. Misterioso como um sonho, também evocou uma sensação do deserto que rodeia Salomé. Um deserto, onde os horizontes desaparecem no nevoeiro e a areia constantemente altera a sua forma.

A música de Pedro Amaral é muito distinta. É difícil descrevê-la em comparação com as outras porque tem uma sonoridade muito própria. “O Sonho” merece ser ouvido mais vezes e apresentado numa sala maior e com melhor divulgação. A encenação de Fernanda Lapa é também excelente, a mostrar quanto impacto podem ter os recursos mínimos, quando o encenador conhece o mundo da ópera. Todo o elenco, cantores e não-cantores, dentro e fora do palco, parece apaixonadamente dedicado – criaram uma obra conjunta e bem precisa.

A Fundação Gulbenkian foi criada pela família Gulbenkian, verdadeiros amadores de arte, que podiam ter criado o seu estabelecimento em qualquer país da Europa, mas escolheram Lisboa, onde o ambiente encaixou nos valores individualistas cultivados entre eles. Acho que os Gulbenkians sentiriam muito orgulho do que a Fundação faz para promover obras iconoclastas, criativas e tão distintas como “O Sonho”.

Para mais críticas da autoria de Anne Ozorio visitem: classical-iconoclast.blogspot.com

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