Em foco

Isabel Soveral


Foto: Sofia Moraes

Questionário/Entrevista

Parte 1 . raízes e educação

Como começou para si a música, e onde identifica as suas raízes musicais?

Isabel Soveral: Comecei a estudar música por volta dos 10 anos de idade, mas, na verdade, o meu contacto com o som começou muito cedo, experimentando “sonoridades” num piano velho que havia em minha casa. Quando eu era criança, abordava o piano como se de um brinquedo grande e fantástico se tratasse.

Que caminhos a levaram à composição?

IS: O meu contacto com a música contemporânea começou por volta dos 17 anos, quando comecei a ir a concertos com a Madalena Soveral – digamos que foi a Madalena que me iniciou na música contemporânea. Conhecer o Jorge Peixinho foi decisivo na minha escolha pela composição musical.

Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?

IS: As minhas aulas com os compositores Jorge Peixinho, Joly Braga Santos, Bulent Arel e Daria Semegen.

Parte 2 . influências e estética

No seu entender, o que pode exprimir e/ou significar um discurso musical?

IS: Um discurso musical comunica uma ideia criativa, que, na sua origem, poderá não ser musical.
No início do processo criativo, “procuro” um material embrionário – os primeiros elementos musicais. Da elaboração e desenvolvimento destes elementos, surge um “tecido” sonoro com determinadas características, que, por sua vez, levará à formatação de uma ideia musical já mais concreta. Todo este processe criativo deverá revelar-se sem contradições formais, de modo a permitir que o discurso musical aconteça naturalmente.

Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

IS: Sim, o meu trabalho criativo é muito influenciado pelas artes visuais. Por vezes, a minha fonte de inspiração é um quadro, ou outra informação plástica, toda em cor e textura. Esta interacção move-se em lógicas que não são compreendidas como musicais, mas que dão origem a ideias musicais, pois é através da música que eu comunico. Relaciono a cor ao som e, por vezes, essa associação som-cor torna-se um princípio formal na elaboração da obra. No entanto, organizo o meu material sempre a partir do intervalo, que é uma entidade mais abstracta.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

IS: No que diz respeito ao passado, talvez a minha música seja influenciada por Webern e Nono.

Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?

IS: Somente como fonte de “inspiração”: é o caso de Watasumi, para seis percussionistas e electrónica, e Inscriptions Sur Une Peinture, para orquestra de câmara, peça inspirada num poema chinês.

Parte 3 . linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas/estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

IS: Não gosto de caracterizar a minha linguagem musical.

No que diz respeito a sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião, ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

IS: Um dos aspectos que caracteriza o meu processo criativo prende-se com a fertilização do que já foi exposto para a criação do novo – um tecido musical em constante transfiguração. Tenho tendência para reutilizar pequenas elaborações iniciais, inserindo-lhes novos elementos musicais, sendo que esta matéria, elaborada e reelaborada, se situa algures entre um tecido sonoro, que ainda não foi recortado, e um gesto mais completo que tem uma forma inerente.
É interessante, quando, duma peça musical terminada, retiro pequenos fragmentos com toda a informação musical que lhes está associada, utilizando-os como um corpo sonoro, do qual parto para a criação de uma nova obra; ou seja, do final de um processo, vou para o início de outro: da obra terminada parto para uma nova criação.
Dentro de um mesmo ciclo de peças, pode acontecer que as últimas já apresentem novas direcções, afastando-se das construções sonoras originais: vou criando e recriando, configurando e transfigurando a matéria; a música vai-se renovando de um modo orgânico – a matéria sonora espera pela obra que, quando acontece, potencia novas ideias que levam à construção de nova matéria.
Um exemplo concreto deste processo criativo é Anamorphoses V, para quarteto de cordas. A obra apresenta o tecido musical que caracteriza o ciclo na sua forma mais madura, juntamente com novos elementos musicais que fertilizam os já existentes. A nova narrativa resultante desta fusão pede um desenvolvimento que é realizado nas obras seguintes.
Na construção de uma obra, há sempre um processo de morfose, que torna o potencial do material “infinito”. Tenho a sensação de estar a trabalhar material vivo, do qual conheço a origem, a evolução e o que necessita para continuar fértil.

Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os “impulsos criativos” ou a “inspiração”?

IS: Gosto de pensar que a minha inspiração está impregnada de raciocínios, e que o meu lado racional se “inspira” ou se apoia em “impulsos criativos”.

Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?

IS: A minha relação com as novas tecnologias é uma relação de amor/ódio.
A minha aproximação à música electroacústica foi estimulada, por um lado, pela necessidade de criar novos timbres e texturas, e, por outro, pela possibilidade de trabalhar a configuração espacial e sua modulação.
As minhas composições electroacústicas influenciam a minha escrita musical no que diz respeito à elaboração da cor e do movimento espacial – são dois elementos estruturais especialmente importantes em toda a minha música.

Defina a relação entre a música e a ciência, e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação.

IS: A música e a ciência estão ligadas pelo menos desde Pitágoras – da teoria dos números parte-se para uma estética musical, onde uma determinada fracção é associada a um determinado intervalo musical. Esta relação deve-se a um princípio importante da acústica, que na generalidade deu origem a toda a teoria da música ocidental.

Qual a importância do espaço e do timbre na sua música?

IS: A configuração espacial e tímbrica na minha obra é da maior importância e tem um carácter modulatório na sua elaboração. Uma das variantes da construção harmónica da minha obra diz respeito ao “timbre harmónico” no sentido plástico do termo.
Alguns exemplos da importância do espaço e do timbre:
Em Anamorphoses V, o essencial da música já apresentada nas primeiras obras deste ciclo contracena com um novo material. Estes novos elementos musicais correspondem a uma sequência intervalar, que é apresentada e depois expandida, e que surge de princípios similares aos aplicados à elaboração rítmica da música anterior do mesmo ciclo. Essa sequência intervalar contrai-se e expande-se, levando ao surgimento dos quartos de tom, elemento sonoro/tímbrico que ainda não tinha sido trabalhado em nenhuma das peças anteriores. Surge, aqui, uma nova dimensão sonora no instrumento acústico.
A fragmentação do tom em pequenas partículas intervalares já estava presente nas primeiras obras do ciclo, mas apenas na parte electrónica. Esta nova dimensão intervalar acrescenta potencial a vários níveis do corpo sonoro, nomeadamente ao parâmetro tímbrico. No discurso musical, a percepção destes novos elementos é gradual, acentuando, mais uma vez, o sentido de morfose e de anamorfose. Digamos que estes microintervalos vão sendo desvendados, como se se esticasse um ”tecido” musical, surgindo, assim, micromundos de sonoridades no seu interior.
Em Anamorphoses V, os microintervalos surgem inicialmente como parte de texturas, resultantes de sequências intervalares (linhas melódicas) apresentadas tão rapidamente que não oferecem o seu contorno melódico, ou horizontal. A audição da sequência na sua forma “perfeita” ou “correcta” só surge mais tarde na peça (processo de anamorfose). Na verdade, inicia-se como uma textura, pela sua forma mais plástica, até se revelar como melodia de contorno bem definido.
Em certas obras, crio uma relação directa entre a organização do timbre e do espaço. Em Paradeisoi, para orquestra, há uma transformação sonora interna permanente, delimitada por uma configuração espacial fixa – notas aguda e grave, e, por vezes, a nota que define o eixo central Por exemplo, o acorde principal de Paradeisoi tem uma função essencialmente tímbrica, relevante na geografia espacial da obra: o mi no agudo (em harmónicos nas cordas e no xilofone) e o dó um quarto de tom acima no registo grave (nas cordas graves).

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

IS: Sim, principalmente na música electroacústica.

Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?

IS: Anamorphoses III (violino e electrónica), Anamorphoses VII (orquestra de câmara), Ciclo Le Navigateur du Soleil Incandescent (as obras de orquestra) e o Concerto para violoncelo e orquestra que estou a escrever neste momento. O meu catálogo de obras orquestrais não é vasto (ao contrário do que acontece com o catálogo de obras para música de câmara), no entanto, é nas obras para orquestra que eu me encontro, sempre, em processos de viragem.

Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares

IS: Sim, são actividades muito complementares, nenhuma delas existe sem a outra. Quando escrevemos música, o nosso cérebro conjuga a escrita e a performance, ou seja, interiormente ouvimos a música – um processo imaginário da interpretação. Só conseguimos escrever, porque o nosso cérebro consegue interpretar.

Parte 4 . a música portuguesa

Tente avaliar a situação actual da música portuguesa.

IS: Muita música na gaveta!

O que, em seu entender, distingue a música portuguesa no panorama internacional?

IS: A música portuguesa é muito criativa. Portugal tem compositores fantásticos. Seria muito importante que a música portuguesa fosse apresentada no estrangeiro com mais regularidade – lá fora gostam muito da nossa música!

Parte 5 . presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

IS: Estou a escrever um Concerto para violoncelo e orquestra (encomenda da Casa da Música e da Câmara de Matosinhos).
Na segunda metade de Agosto estarei a trabalhar numa peça para violoncelo, contrabaixo, electrónica e imagem (encomenda do grupo Contracello).
Paralelamente estou a organizar a segunda edição do EAW, que será o EAW 2017 (Electroacoustic Winds 2017), conferência internacional em torno do som e da imagem; e que acontecerá de 13 a 17 de Novembro na Universidade de Aveiro.

Isabel Soveral, Agosto de 2017
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