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ENTREVISTA A PEDRO AMARAL (Versão
Integral)
Paris 1994
Parti para Paris em 1994, para estudar composição com Emmanuel
Nunes. Era um sonho que tinha desde há muito tempo. No ensino do Emmanuel
encontrei uma atitude de permanente colocação em questão
das minhas ideias. E isso foi muito importante; não tanto no que se refere
às soluções técnicas individuais, mas à consciência
da ponte que existe, em cada um de nós, entre aquilo que construímos
como obra e aquilo que somos como natureza humana. Nesse sentido, o ensino do
Emmanuel acabou por ser quase uma permanente psicanálise do meu ser musical,
ou da maneira como o "ser" se projecta musicalmente. A pergunta fundamental
do seu ensino é: "a que é que corresponde em ti isto que
escreveste?". É um caminho difícil se aceitarmos percorrê-lo
a fundo; mas é extremamente fértil. Parece-me difícil poderemos
realizarmo-nos como pessoas e como artistas sem uma aceitação
incondicional daquilo que somos. Esta é uma parte da lição
de Nunes. E uma tal aceitação pressupõe uma auto-análise
permanente, a todos os níveis.
A partir daqui, encontramos as nossas próprias soluções
técnicas, as nossas premissas individuais. Devo no entanto dizer que,
a partir de um certo momento, a conquista dessa individualidade, com todo o
artesanato que se gera, me pareceu insuficiente. A auto-análise é
fundamental para uma verdadeira conquista dos nossos próprios territórios,
mas faltava-me aprofundar uma visão mais ampla, uma espécie de
cartografia histórica do meu passado próximo, uma quase "justificação"
das minhas opções individuais num contexto histórico global.
Como músico, sempre cultivei uma reflexão histórica, permanente,
quase obsessiva. Decidi então fazer um mestrado sobre Gruppen,
de Stockhausen, porque é uma das obras que leva mais longe a ideia do
sistema, no contexto da linguagem serial, que corresponde à grande época
dos sistemas (em meados dos anos cinquenta). O sistema tonal constituiu um extraordinário
paradigma; a partir do momento em que se tornou uma língua morta, não
temos outra solução a não ser inventar novos paradigmas,
hoje relativos, pessoais, transitórios. E os anos cinquenta conheceram
uma reinvenção constante, de cada compositor e em cada obra, de
novos paradigmas de sistematização da linguagem. (Nos anos sessenta
vamos assistir a uma corrosão crescente desses paradigmas, o que, aliás,
está em pleno acordo com a evolução social do Ocidente
ao longo dessa década.) Ora, a reflexão sobre a linguagem serial
(que é a última linguagem relativamente estabilizada que nos precede)
levou-me a estudar uma obra máxima desse contexto, e por isso escolhi
Gruppen.
Conceitos de tempo e de espaço estudados a partir de Gruppen
Há nesta obra uma assimilação muito interessante entre
a dimensão espacial e a dimensão temporal. Paradoxalmente, ao
contrário do que se pensa quando se ouve a obra em concerto, com as três
orquestras em torno do público, com o som em permanente movimento, o
espaço, como dimensão abstracta, não tem uma importância
capital na poética, na arquitectura do sistema. É quase que apenas
uma consequência da estrutura temporal que, essa sim, constitui a própria
pedra de toque dessa arquitectura. E curiosamente esta dicotomia entre um aspecto
flagrante e a sua quase irrelevância no seio do sistema é uma constante
em muitas obras de Stockhausen. Não há dúvida de que o
sistema pode ser, como aqui, levado tão longe quanto possível;
mas Stockhausen leva ainda mais longe um lado puramente vivencial, sensível,
do próprio acto sonoro. É essa dialéctica que faz dele
um criador excepcional.
Efectivamente a análise desta obra marcou-me muito como músico
e como estudioso, mas não propriamente do ponto de vista técnico;
ajudou-me, na minha meditação histórica, a enquadrar a
minha própria linguagem, mas não integrei de modo nenhum as soluções
concretas que Stockhausen propõe. A influência, quando é
profunda, ultrapassa em muito o quadro puramente formal, circunstancial, das
obras.
Depois de ter feito os 3 primeiros anos na classe de composição
dirigida por Emmanuel Nunes no Conservatório de Paris, acumulei o 4º
e último ano com o 1º ano da École des Études en Sciences
Sociales. Acabei o conservatório em 1998 e, ao mesmo tempo, obtive
a minha graduação de mestrado. Na realidade, sem o saber na altura,
tinha encetado um período de reflexão teórica mais amplo
que viria a culminar num Doutoramento sobre uma outra obra de Stockhausen -
Momente.
Momente e a problemática da forma
A minha "tese" é a seguinte: nos anos cinquenta a constituição
da linguagem serial implica o aparecimento de novas formas, coerentes com os
seus princípios fundamentais; o desenvolvimento dessas novas formas vai
por sua vez implicar uma desagregação de determinados princípios
do serialismo. É evidente que nos anos cinquenta não faria qualquer
sentido continuar a adoptar formas clássicas, tentação
a que os vienenses tinham cedido ainda na década anterior, Webern em
particular, numa série de obras onde deparamos com uma sistematização
límpida das formas clássicas, quase como uma demonstração
da aplicabilidade da sua nova linguagem, como se se testassem os novos princípios
através dos seguros cânones do passado - o que não deixa
de revelar um pensamento assaz paradoxal. Mas nos anos cinquenta, a linguagem
serial é levada tão longe que efectivamente implica a pesquisa
de novas formas. E no momento em que as várias categorias da linguagem
se encontram já suficientemente estabilizadas, a última delas,
praticamente a última que ainda não está ao nível
do conjunto dos princípios da linguagem, é a forma. Até
ali, nos primeiros anos de sistematização do serialismo, não
há propriamente formas inteiramente adaptadas à sua natureza e
aos seus princípios constitutivos, não há propriamente
uma reflexão formal. (Há formas que dependem do texto, mais ou
menos manipulado, como é o caso de Marteau sans Maître,
construído sobre uma dramaturgia poética e sobre a interpenetração
de 3 ciclos, o que, em si mesmo, deriva da construção formal de
Messiaen, nomeadamente da interpenetração dos ciclos em Turangalîla,
embora Boulez deteste que se faça este paralelo; e depois há formas
que são mais ou menos livres, como as de Stockhausen na primeira metade
dos anos cinquenta).
Quando se chega a 1955, a linguagem está bastante sistematizada e suficientemente
estável para integrar o aparecimento de novas formas. Os compositores
dão-se conta de que, fora do contexto tonal, não há nenhuma
razão para que as formas musicais tenham obrigatoriamente de constituír
percursos unívocos do ponto de vista narrativo, ciclos fechados sobre
si próprios. A influência tardia de Joyce faz-se sentir no panorama
da composição musical.
No contexto da tonalidade, as formas clássicas dependem de um sistema
fechado, onde o percurso tonal, efectivamente unívoco, circunscreve a
forma. À linguagem tonal (que podemos comparar a um modelo fixo do universo,
um sistema gravitacional perfeitamente estável) correspondem logicamente
formas fixas. Numa linguagem onde a poética é por definição
aberta (podemos compará-la a um modelo do universo em permanente expansão),
o novo domínio formal pede, naturalmente, novas formas, elas próprias
em expansão, elas próprias abertas. Chegamos assim ao domínio
da forma aberta. A forma aberta, porém, tal como a encontramos ao início,
por volta de 1956 (Stockhausen e Boulez), assentava em sistemas seriais "íntegros",
por assim dizer. Mas à medida que a própria noção
de forma aberta se desenvolve, o sistema modifica-se profundamente, desgasta-se.
Em Stockhausen, por exemplo, cada fragmento da forma acaba por exigir uma tal
individualização que requer pólos - quase "tónicas"
no sentido tonal - que identifiquem, que valorizem e que incarnem, digamos assim,
a sua singularidade: é o fim do hiper-relativismo serial e da sua famosa
abolição do princípio de identidade. Não é
por acaso que Momente se apoia numa morfologia harmónica quase
inteiramente tonal: acordes maiores ou menores, maiores e menores, ou diminutos
(ainda que Stockhausen desfigure completamente o sentido primeiro dessa morfologia,
com é evidente: de facto não ouvimos um único fragmento
de Momente em função da tonalidade, apesar da constituição
factual da materia harmónica).
Ou seja, em meados dos anos 1950 estávamos em presença de uma
linguagem que induz o aparecimento de uma nova tipologia formal e, menos de
10 anos depois, o fenómeno inverte-se: a conquista dessa nova tipologia
formal vai aniquilar o universo linguístico que lhe deu origem. Esta
pequena observação fascinou-me, e a análise de "Momente"
foi levada tão longe que acabou por constituir o tema único do
meu doutoramento.
O Conceito de forma na obra de Pedro Amaral
Penso sempre a forma como "coisa em si". Nesse sentido, há
uma diferença fundamental entre as minhas ideias e as de Emmanuel Nunes.
A forma nas suas obras é um resultado directo, praticamente, da articulação
dos conteúdos que se encadeiam, não uma dimensão trabalhada
em si mesma. Nesse sentido a lição de Stockhausen terá
sido fundamental para mim. Não para forjar a minha técnica (a
técnica de Momente é irrepetível), mas permitiu-me
identificar e reforçar algumas das minhas próprias reflexões
no domínio da forma. Há, porém, outros autores e obras
que me influenciaram tanto, neste sentido, como Stockhausen. Talvez mesmo mais.
É o caso de Proust. A obra de Proust, é para mim fundamental enquanto
compositor e enquanto fruidor no sentido mais básico. É uma leitura
que cultivo há muito anos, que acabo e recomeço permanentemente,
como se deambulasse por uma cidade em permanente redescoberta.
Há em Proust um lado fascinante, justamente, para quem medita sobre as
questões da forma. A construção da frase, por exemplo,
por vezes longuíssima, que nos obriga a uma abordagem em várias
etapas. Numa primeira leitura lemos, por vezes, omitindo os muitos parêntesis
e interrupções. Depois, pouco a pouco, vai-se acrescentando elementos
à frase numa série de leituras e níveis de leitura subsequentes.
Este tipo de pensamento influenciou-me muito, não só para minha
própria construção da frase, em termos musicais, como para
a indução de uma forma global coerente com ela. O que, aliás,
segue de perto o exemplo de Proust, onde a "frase", a "parte"
e o "todo" do romance seguem exactamente os mesmos princípios
labirínricos de construção.
Por exemplo: na minha peça Script para marimba e electrónica
em tempo real, existe um fragmento, ao fim, a que chamei Post Scriptum,
que é um autêntico estudo sobre a frase e sobre a forma, neste
sentido. A partitura tem uma série de parêntesis de vários
formatos. O músico começa a ler a partitura, de início,
tocando apenas o que não está dentro dos parêntesis - faz
uma leitura, chega ao momento do parêntesis e salta-o, ignora-o, passa
à frente, até chegar ao fim da partitura. Quando chega ao fim,
recomeça e integra o primeiro nível de parêntesis. Tal como
em matemática ou em programação, há vários
níveis de parêntesis. Em literatura é igual. E na literatura
musical, tal como eu a entendo, também é igual. O fragmento que
inicialmente é apenas uma frase vai aumentando a partir do seu próprio
interior, vai-se expandindo e completando o seu sentido através das sucessivas
releituras. Constrói-se assim, em certa medida, uma forma aberta. Não
uma forma aberta no sentido Bouleziano - que oferece a possibilidade de estabelecer
percursos diversos através de um determinado grupo de objectos. Também
não uma forma aberta como em Stockhausen - onde o intérprete relê
sucessivas vezes o mesmo objecto sob perspectivas diversas. Post Scriptum
é uma forma efectivamente aberta em termos da constituição
do próprio sentido da frase, da forma, da obra: à medida que o
intérprete vai passando diversas vezes pelos mesmos objectos, vai acrescentando
sentidos, ramificações, extrapolações, desenvolvimentos,
vai desvendando um sentido global através de uma sucessão de sentidos
transitórios. A forma abre-se progressivamente. A frase em Proust influenciou
muito directamente o meu trabalho - mas há exemplos do mesmo tipo de
prática, menos generalizada é certo, menos sistemática,
nas últimas Sonatas e nos últimos Quartetos de Schubert, por exemplo.