António Pinho Vargas – Imagens de som, cor e
sombra
Por Helena Santana
Baudelaire
diz-nos, que para adivinhar a alma de um poeta ou artista, ou pelo menos a sua
principal preocupação, devemos procurar a palavra, ou constituinte, que com
mais frequência figura na sua obra. Essa palavra, ou constituinte, traduzirá a
sua obsessão mais premente. Seguindo esta linha de pensamento, não traduzirá o
compositor, através dos sons, dos objectos, dos processos, das técnicas e dos
universos que personifica, as suas obsessões mais fortes e vivas? Na nossa
opinião, sim. No caso de António Pinho Vargas[1],
os objectos que materializa, os processos que desnuda, as técnicas que
descerra, os universos que representa, são diversos e seus, tornando-se, em
alguns casos, únicos. As imagens de som, cor e sombra que se descobrem são o
involuntário de uma existência, a sua, e o instintivo das obsessões que encerra
enquanto ser e ter. As suas obras, personificando as metáforas que corporaliza
continuamente, assim como alguns aspectos do seu ser e ter, tornam-se nossas no
momento da sua interpretação, revelando-nos, por um lado, alguns modos de
pensar e existir que são seus, e por outro, o eu que as entende e goza.
Por outro lado,
sabendo que toda a obra de arte obedece e vivifica uma necessidade intrínseca à
própria vida, necessidade essa que o artista sente e da qual tem uma percepção,
por vezes pouco clara, e sabendo que os objectos sonoros são os elementos que a
definem, reflectindo uma imagem e uma emoção sentida pelo seu autor, cabe ao
intérprete, e ao ouvinte, desfrutarem, se assim o entenderam, souberem e
quiserem, o universo de sons e emoções veiculado por ela e pelo seu autor.
Contendo e definindo espacio-temporalmente um objecto imaginário de natureza
emocional, a música define-se na obra, desnudando-se num mundo de aforismos. O
músico, seja ele intérprete ou compositor, conhece, concebe e recria um mundo,
uma natureza premente de significação, assentindo uma compreensão intuitiva das
formas, as mesmas formas que se expressam através da vida e na existência do
som e da obra. No entanto, o sentimento expresso não é objectivado. O artista
não necessita expressar os seus sentimentos, apenas desnuda a natureza e a
forma dos sentimentos que nutre pela vida, objecto de criação, ser e sentir.
Assim, uma
expressão musical retracta expressivamente uma realidade ou uma emoção sentida,
e, por vezes, contida, sem imitar o objecto representado. Segundo Suzanne
Langer, mais do que a descrição da coisa que tem ou exibe o sentimento, é a
forma do sentimento que importa. Esta forma pode ser apreendida, tanto na sua
forma visual como auditiva. Falando da sua forma visual, falamos, igualmente,
de imagens de som. Falar de imagens de som é reconhecer, implicitamente, a
existência sonora de um objecto, ideia, ideal ou ser. A sua materialização na
ideia musical permite a criação e significação corpórea através da obra. Pela
técnica e pela imaginação, o compositor revela-se o tradutor dessa mesma
significação, definindo o produto de uma interacção com ele próprio e com as
obsessões que redimensiona.
Manifestação da
actividade humana e representação da aptidão humana para representar elementos,
ideias e factos através de sons, signos, gestos ou objectos, uma linguagem
permite encontrar um universo próprio para a transmissão de um universo que é
seu. A invenção, por parte do compositor, dessa linguagem, revela-se um passo
decisivo na sua formação e estilização. A obra de arte justa exigirá, sempre, o
domínio completo dessa mesma linguagem. Sem uma boa organização dos materiais,
sem o respeito das leis de organização de todos os constituintes da obra e sem
um bom equilíbrio entre as suas forças e linhas de orientação, ela não vive.
Para que se torne um grande acontecimento artístico, o criador deve repensar e
dar uma nova forma a todos estes factores, estando o progresso técnico e
artístico ligado ao domínio e desenvolvimento dos seus materiais, meios e
técnicas de produção, gravação e divulgação.
O conhecimento e
a investigação continuada sobre si e o mundo, permite ao compositor,
independentemente da época histórica, conhecer e dominar diferentes processos
de concepção, criação e formalização do objecto artístico, revelando-se a
significação desse objecto, uma parte essencial do processo criativo. Por outro
lado, a criação e utilização de algoritmos e paradigmas na definição das
estruturas semânticas da sua obra, requerem da sua parte um conhecimento
profundo dos meios e técnicas de formalização, de definição, organização e
estruturação discursivas. Compor traduz-se na realização de uma sequência de
tarefas que definem os diferentes planos da estrutura musical. A tradução de um
pensamento, de uma ideia, realiza-se, através, e com o conhecimento profundo de
uma linguagem e de um sistema de organização sonoros. Este facto, implica o
estudo, a reflexão, a aquisição e a aplicação de conhecimentos vários
pertencentes a diferentes domínios do conhecimento tanto científico como
artístico.
Por outro lado, o intérprete, enquanto sujeito de
recriação da obra, e enquanto significante de um objecto plural, tem uma
responsabilidade acrescida devido à conjuntura criativa manifesta e à
diversidade de linguagens e de sistemas proliferantes. Funcionando como veículo
transmissor de uma vida, de um mundo subjectivo inerente à obra, o intérprete
deve, quando possível, realizar um trabalho prévio com o compositor. Deste
trabalho, cúmplice, o primeiro impregna-se das preocupações, atitudes,
aspirações estéticas, poiéticas e poéticas, ideias, ideais e formas de se ver e
recriar no tempo e espaço da obra por parte do compositor, criando, em seguida,
uma estrutura de significação definida e descrita pelo seu autor, e que se
encontra, agora, sob o seu comando e responsabilidade.
A projecção sonora do texto musical resultante da
performance, torna a existência espacio-temporal da obra possível. Traduzindo
um estilo, uma linguagem, um universo sonoro que se quer assimilado e
compreendido antes de ser transmitido, a interpretação exige investigação
depurada por parte do músico-intérprete, para que se torne possível a
existência, e vivência, sem mácula, do organismo musical descrito. Por outro
lado, o texto musical, base de trabalho de todo o intérprete, será desmontado
por forma a desvendar a sua riqueza e os seus segredos mais profundos. Encontrar
o equilíbrio entre o universo do compositor, transcrito no texto musical, e o
universo do intérprete, traduzido na gestualidade da obra é a tarefa árdua, mas
também dignificante, de todo o intérprete.
A obra de António Pinho Vargas, diversa e significativa,
desnuda espaços de som, vislumbra existências oníricas, desmembra fragmentos de
vida que se nutrem nos sons, nas cores, nas brumas, nos significantes e nos
significados do existir. A palavra que a narra, sob o véu de um gesto
revelador, é o espelho do entusiasmo que lhe dá corpo e vida. A obra, essa,
persiste acalmando a pulsão e o nojo criativo. Esse espelho, reflectindo a
imagem da criação, do fito e da alma, encontramo-lo em toda a obra do autor, e
expressamente em Mirrors
(1989)[2],
para piano, obra cujo título condiciona alguns parâmetros da mesma. Segundo
António Pinho Vargas, o título foi escolhido depois de ler um artigo de Pierre
Boulez onde este último afirma que: “o compositor se vê alternadamente em dois
espelhos: o espelho da técnica e o espelho da imaginação”[3].
Estas duas dimensões condicionam o processo compositivo da obra e dos três
andamentos que a compõem.
O primeiro, Mirrors I, confrontando a técnica serial e a imaginação
criativa, utiliza fragmentos de séries de forma mais livre do que a veiculada
pelo primeiros compositores seriais[4].
Inicialmente, “na música serial post-weberniana reina o desejo de fazer viver a
matéria sonora num estádio de grande dispersão. As obras musicais tendem a
desafiar todo o esforço de memorização, situando-se acima de qualquer efeito de
retórica. Obtém-se, assim, uma espécie de grau zero do processo de escrita
musical, sem dúvida radical face à herança cultural vivificada. Revelar-se-à
igualmente fortuito que esta tendência coincida, historicamente, com o
aparecimento de uma nova crónica ou mesmo, com o aparecimento do
estruturalismo. [...] No entanto, a tomada de consciência de que o princípio da
não-repetição generalizado a todos os parâmetros da composição, poderia gerar
uma indiferenciação nefasta à audição, leva a que os compositores seriais
introduzam progressivamente nas suas obras um certo grau de previsibilidade,
retomando a aplicação de certas categorias directivas no processo
composicional”[5].
Não podemos esquecer ainda que, “numa escrita serial
se impõem, normalmente, conceitos de descontinuidade, de assimetria e de
aperiodicidade, conceitos estes que desorientam a percepção da obra. Este
facto, produz uma imprevisibilidade habilmente organizada. Aplicada aos
diferentes componentes do som, a série acorda novas funções à noção de
variação. A sua variação revela-se, ainda, condição absoluta organizando
habilmente todos os aspectos da obra de arte. Enquanto fundamento torna-se, de
certo modo, dissimulada, não sendo possível identificá-la enquanto entidade
melódica ou rítmica”[6].
Contrariando esta tendência, Jean Barraqué concebe
uma nova forma de trabalhar a série, ou seja, usa “séries proliferantes”.
Segundo ele, estas séries são um processo de composição que “implica o uso de
um processo formal que favoreça a exploração ilimitada de um material. [Através
da série original, e de todas as suas permutações submetidas a uma subtracção
constante], as sequências não se encadeiam respeitando um plano temático, mas
sim, o do irreconhecível. [Consequentemente, nasce um universo sonoro] que
resulta da transformação progressiva e rigorosa dos seus próprios elementos
numa invenção contínua, cuja aparente espontaneidade e a livre expansão,
permitem uma espécie de improvisação controlada. [A técnica serial não se torna
um princípio formal fechado,] convertendo-se, pelo contrário, num princípio,
por excelência, aberto e inesgotável”[7].
O uso da série de uma forma não convencional, a
repetição de materiais diversos provenientes de uma série primeira (ou de fragmentos
desta), a criação de elementos de natureza estática e repetitiva, o uso de
personagem sonoras, fazem com que a escrita de António Pinho Vargas, e em
particular nesta obra, revele uma leitura diferente do processo compositivo
(atendendo ao emprego inicial de uma série), o uso de princípios de organização
sonora que afirmam universos cognitivos e estruturalistas diferentes dos
propostos por uma escrita serial, concretizando em objectos de som uma forma de
pensar, existir e criar só sua.
Para o autor, o uso da série dodecafónica e a
influência de Boulez são notórias nesta obra. Esta influência encontra-se no
recriar sonoro das seguintes palavras de Boulez: “Aqui, não existem escalas
preconcebidas, ou seja, estruturas gerais nas quais se insere uma forma de
pensar específica. Por outro lado, e a cada vez que se exprime, o pensamento do
compositor determina-se por uma metodologia própria, criando os objectos e a
forma necessários à sua organização. Se por um lado, o pensamento tonal
clássico se baseia num universo definido pela gravitação e a atracção, o
pensamento serial, por outro, funda-se num universo em perpétua expansão”[8]. A expansão do som puro, do sonoro e do
material revela-se constante em Mirrors. Nos seus três andamentos, António Pinho Vargas apresenta,
explora e varia dois espaços simultâneos, espaços de criação e definição
contraditórios na sua forma de ser e ter.
Por outro lado, e contrariamente ao uso de um tema,
ou motivo, como no caso de uma escrita mais clássica, a série não se apresenta
como um motivo, mas como uma célula geradora de potencialidades, descritas e
discriminadas ao longo da obra, permitindo a sua coerência formal. Segundo
Arnold Schoenberg, “na música de doze sons a ordem resulta das derivações
tonais que existem entre os elementos de um série fundamental [...]. [Por outro
lado,] o substrato base da obra é coerente, porque a sua série-base é
constantemente referenciada”[9].
Ainda que esta série não seja considerada um tema,
no sentido tradicional do termo, Adorno evoca a sua relação essencial com o
tematismo afirmando que, “a escrita serial não deve ser concebida unicamente
como a antítese de uma escrita temática e motivica. A música serial nasce,
segundo ele, da generalização do tematismo, ou seja, da extensão do princípio temático
ao tempo e ao timbre. Escrita serial, e escrita temática, têm em comum o mesmo telos respeitante a uma organização total do
discurso. [Assim, devemos pensar que a composição serial, no seu conjunto,
define a unidade como um facto, por vezes, parcialmente escondido. No entanto,]
na escrita temática, a unidade define-se como qualquer coisa de palpável e
reveladora”[10].
Por outro lado, Luciano Berio considera a música
serial, e contrariamente à linguagem tonal, “como qualquer coisa de
linguisticamente indefinível. [Para ele,] não possuímos uma gramática, mas
ideias múltiplas e níveis diferentes de “gramaticabilidade”, os quais, se
perpetuam independentes de toda a significação semântica”[11].
A série, constituindo uma evidente economia de
meios, pois todo o material melódico e harmónico são retirados de um só núcleo
de base, condiciona a estrutura formal da obra. Utilizando o método serial,
transforma-se de forma decisiva a linguagem musical e a essência do processo de
composição. Por outro lado, o enriquecimento progressivo do universo sonoro,
conduz à criação de ordens sonoras novas, instalando-se uma nova hierarquia
discursiva e musical. As obras assim concebidas, possuem, agora, e através da
série, um elevado grau de coerência construtiva[12].
Encontramos todavia na música dodecafónica e serial
a assimetria, a aperiodicidade e a descontinuidade, pois o material vive
através da sua dispersão no interior da obra, sendo os sons entendidos sem a
tensão psicológica ou o efeito de memorização anteriores. A série torna-se, a
pouco e pouco, na forma de organização sonora mais importante controlando todos
os elementos discursivos e formais. No entanto, não é este o universo sonoro
que fruímos na obra de António Pinho Vargas, pois a emotividade e a
expressividade predominam, caracterizando um discurso claro, conciso, preciso e
emotivo.
Relativamente a Pierre Boulez e à obra Marteau
sans Maître, Pinho Vargas
comenta: “Se o ponto de partida continua a ser, nesta obra e em várias outras,
a técnica dos doze sons, as operações desse tipo produzem acordes, blocos
sonoros, como Boulez preferia dizer, nos quais uma ordem fixa, obrigatória,
deixa de ser uma condição indispensável [...]. Uma nota pode ser usada cinco
vezes, outra duas, e as restantes quatro, apenas uma. Desta forma, a nota
repetida adquire, naturalmente, uma predominância e pregnância auditiva
superior”[13]. Em Structures
[14], por outro lado, o compositor cria a partir da série
original e retrógrada, duas matrizes sobre as quais funda as várias variantes
da obra[15].
O conjunto das durações obedece, igualmente, a uma série cujos constituintes
fazem parte de uma progressão crescente. Boulez associa à série de alturas,
séries de durações criando, simultaneamente, matrizes da série de alturas e
matrizes da série de durações. O compositor não utiliza, no entanto, somente
séries de durações para organizar ritmicamente a peça, constrói dois estratos
rítmicos, um cantus firmus (série),
e um tropo (livre),
inovando quando emprega estas noções não melodicamente, mas ritmicamente[16].
A este nível, o compositor utiliza passagens definidas unicamente através da
série do cantus firmus,
ou combinando as duas, tanto num instrumento como no outro, de forma
simultânea.
A influência de
Pierre Boulez, e a estratificação organizativa da obra a partir de elementos do
passado, revela-se no segundo andamento de Mirrors. Assim, em Mirrors II, António Pinho Vargas utiliza dois estratos
sonoros: uma Color,
repetida a velocidades de execução e registos distintos (uma estrutura de
características predominantemente melódicas), e uma Talea de 9 durações. Utilizando conceitos e
elementos do passado, Pinho Vargas submete a sua música a leis de organização
diversas provenientes de universos estruturantes e sonoros díspares. Somente a
noção de arquétipo permite a sua junção. Através desta noção, o compositor
permite-se a sobrepor realidades distintas e a conceber universos de som
regidos por estruturas formais e discursivas diversas. Note-se que é na
diversidade e na variedade que se desnuda o som e a alma da obra.
Sabendo que uma talea consiste em adaptar ao tenor (no século XIV, uma melodia gregoriana sobre
a qual se construía o edifício constrapontístico), uma estrutura rítmica que se
encontra repetida de forma continua, e que a color, é uma expressão latina pela qual se
designava, no século XIII, uma melodia que era repetida continuamente, o autor
concebe uma estrutura discursiva baseada nestes dois elementos. A color, sendo composta por dez agregados sonoros, não manifesta um
centro tonal, pois Pinho Vargas concebe, no segundo andamento de Mirrors, uma estrutura discursiva e contemplativa com
as características descritas, mas significando um universo sonoro
contemporâneo, bem como a contemporaneidade da linguagem e da acção. Assim, o
autor compõe uma estrutura de agregados de natureza diversa, fruídos segundo um
esquema preciso e denunciando uma funcionalidade própria[17].
O terceiro
andamento da obra, Mirrors III, reflecte influências de um mundo criativo dilecto, o mundo do Jazz. O
seu primeiro objectivo, ao enformar este segmento da obra, foi o de realizar um
corpo sonoro que compreendesse simultaneamente uma “determinada escala (várias
escalas octatónicas) [e] uma polirrítmia complexa”[18].
Segundo o autor, releva de Ligeti “o gesto escalar e a figuração de acentos. [O
terceiro andamento da obra inicia, segundo ele,] com duas escalas octatónicas,
um desfasamento polirrítmico gradual e uma subida no registo. [...] A estas
duas vozes, [sobrepõe] uma terceira, livre, seguindo dois critérios: primeiro,
procurar o máximo de aproximação possível ao acorde perfeito [...]; segundo,
mediante um percurso sinuoso entre a primeira voz do mecanismo e a voz livre,
procurar frases que fizessem sentido do ponto de vista melódico. Finalmente,
[filtrou] de várias formas as vozes do mecanismo em função do resultado do
todo”[19].
Saliento a constante sobreposição, sucessão e alternância de materiais e
estruturas, assim como a simbiose perfeita de linguagens aparentemente diversas
e díspares[20].
Em Poética
dell’Extinzione Secundo Milhail Serguievitch (1990) para flauta e quarteto de cordas, Pinho
Vargas usa a mesma série da opus 26 de Arnold Schoenberg fazendo uso dos seus
hexacordes em separado. Segundo o autor, “o título tem uma referência política
implícita. Apesar da ausência, nos últimos tempos, de reflexão teórica sobre as
relações entre a arte e a política, julgo que a incrível aceleração da história
recente, poderá produzir a breve trecho um desabamento da política sobre a arte
e a sua “autonomia””[21].
Musicalmente, a mesma série surge na primeira obra para flauta solo de 1983,
obra onde a série decorre de forma convencional, tendo como intervalo de
encadeamento, a oitava.
Em Explicit
Drama (1992) para
orquestra, trio de Jazz e percussão, “o material melódico e harmónico deriva de
uma célula-melódica-base (si bemol, lá, fá, mi). A melodia principal da
primeira secção utiliza, preferencialmente, o intervalo de trítono, o intervalo
“fetiche” da música serial. Mas, no jogo dos músicos de Jazz, o próprio
intervalo e a sua repetição obsessiva em vários graus, transfigura-se”[22].
Segundo o autor, a obra releva a transformação de materiais, desenrolando-se
como um ritual interrompido.
No processo
compositivo permitimo-nos afirmar que: “permanecerá matéria o que for
impenetrável, [...] será promovido a forma o que for estruturado
racionalmente.”[23] Assim,
depois de formalizado e racionalizado, o material musical, neste caso a série,
torna-se forma, construindo, no espaço e tempo da obra, um objecto sonoro vivo
– a obra musical. Pinho Vargas usando de mestria plena significa e materializa
a obsessão urgente de criar.
Junho 2005
[1] António Pinho Vargas nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1951. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto. Diplomou-se em Composição no Conservatório de Roterdão onde estudou 3 anos com o compositor Klaas de Vries, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Frequentou cursos e seminários de composição com Emmanuel Nunes em Portugal, John Cage e Louis Andriessen na Holanda, Gyorgy Ligeti na Hungria e Franco Donatoni em Itália. Professor de Composição na Escola Superior de Música de Lisboa desde 1991, desempenhou as funções de assessor na Fundação de Serralves (Porto), entre 1994 e 2000, e no Centro Cultural de Belém, entre 1996 e 1998. Do Jazz, gravou vários discos de originais e tocou com músicos como Kenny Wheeler, Steve Potts, Paolo Fresu, Arild Andersen, Jon Christensen e Adam Rudolph. Compõe diversas obras para teatro e cinema, nomeadamente para os filmes de João Botelho: Tempos Difíceis (1988) e Aqui na Terra (1993); Cinco Dias, Cinco Noites (1996), de José Fonseca e Costa e Quem és tu? de João Botelho (2001).
[2] Mirrors foi estreada em Amsterdão em 1990 pelo pianista Paul
Prenen. Mais tarde, foi executado por diversos pianistas, tanto nacionais como
estrangeiros, de entre os quais destacamos Ronald Brautigam, Madalena Soveral,
Francisco Monteiro, Tania Achot, Gloria Chen-Chocran, Volker Banfield ou Miguel
Henriques.
[3] VARGAS, António Pinho, Sobre a Música,
Ensaios, Textos, Entrevistas.
Porto, Edições Afrontamento, 2002, p. 150.
[4] No seu livro Sobre a Música, Pinho Vargas cita Jean- Baptiste Barrière:
“nos últimos serialistas ou pós-serialistas, a série não é mais que um pretexto
inicial ao qual se poderia substituir praticamente qualquer outro mecanismo. A
imposição de estruturas, para tentar formar o informal, passa por caricaturar
os gestos [...] (VARGAS, António Pinho, opus cit., p. 39). Esta é uma das razões porque o compositor
utiliza a série de forma livre. A série serve unicamente de material base. A
forma como estrutura o seu discurso será diferente.
[5] BOSSEUR, Jean-Yves, Vocabulaire de la
Musique Contemporaine.,
La Flèche, Minerve, 1996, p. 156-157.
[6] BOSSEUR, Jean-Yves, op. cit., p.156
[7] BOSSEUR, Jean-Yves, op. cit.., p. 157
[8] BOULEZ Pierre,
"Série", Relevés d'apprenti. Paris, Seuil, 1966, pp. 296-297
[9] SCHOENBERG, Arnold, “Comment j’ai
évolué”, Le style et l’idée. Paris, Buchet/Castel, 1971, p. 74.
[10] ADORNO, T. W., “Vers une musique
informelle”, Quasi una Fantasia. Paris, Gallimard, 1982, p. 315.
[11] BERIO, Luciano, “Façon de parler”, Preuves, nº 180, 1966, p. 31.
[12] Arnold Schoenberg, não intitula a sua de compor como “ “un système », mais bien comme « une méthode », comme un outil de compositeur et non comme une simple théorie. Aussi terminais-je mon enseignement par cette phrase : « Servez-vous de la série et composez comme vous en aviez l’habitude auparavant ». Ce que je veut dire : « Continuez d’employer les formes d’expression, les thèmes, les mélodies, les sonorités, les rythmes dont vous avez l’habitude ». SCHOENBERG, Arnold, “La série schoenbergienne”, Opus Cit., p. 161. Não deixa de não ser contraditório.
[13] VARGAS, António Pinho, opus cit., p. 42.
[14] Este livro, escrito entre 1951 e 1952, revela-se de uma grande complexidade rítmica; a série de alturas mostra-se igual à de Mode de Valeurs et d’intensités de Olivier Messiaen, a obra que influência directamente Structures de Pierre Boulez.
[15] As matrizes são obtidas a partir do número de cada nota da série original e das suas transposições. A partir destas matrizes, original e retrograda, Boulez obtém as durações, as intensidades e as formas de ataque de cada som.
[16] Sendo livre a nível rítmico, o estrato é rigorosamente serial para as alturas.
[17] A color descrita surge segundo a sequência que passamos a descrever: duas vezes em movimento original, e completa, dos compassos 1 ao 13, uma sequência incompleta, enunciando os acordes 1 a 5, compassos 13 a 16, e os acordes 4 a 1, compassos 17 e 18; duas vezes em movimento retrogradado, e completa, dos compassos 18 ao 25; duas vezes em movimento original, e completa, dos compassas 26 a 49 e, para finalizar, uma sequência incompleta, do acorde 1 a 5, ao longo dos compassos 49 a 57.
[18] VARGAS, António Pinho, opus cit., p. 150.
[19]VARGAS, António Pinho, opus cit., p. 48.
[20] Pinho Vargas usa a série sob a influência de
Boulez e Ligeti. Nestes autores a série “é por vezes subdividida em grupos de
três ou seis sons, e as estruturas daí resultantes relacionam-se entre si por
imitação, inversão, etc.”. (Dicionário Oxford, p. 781.).
[21] PINHO VARGAS, António, Poética
dell’Extinzione Secundo Milhail Serguievitch. 16º Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p. 182.
[22] PINHO VARGAS, António, Explicit Drama. 16º Encontros de Música Contemporânea de
Lisboa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p. 92.
[23] POUSSEUR, Henri, “De la recherche
concrète à une musique”, artigo inédito de 1953.